Friday, December 22, 2006

Quando me dei conta, era romântico entre ateus. E herege digno do ódio do cristão mais piedoso. Viver por conta, sem a ilusão de pertencer. Detestável na diferença, solitário; ah, existe um rebanho para mim? Senhor, senhor, diz-me, por Deus, faz-me entender quem sou. Uma resposta e serei fiel. Werther acreditou no amor; Antoine morreu enjoado, foi falta de sentido. Se me disseres, és ateu; sê-lo-ei com fé, entregue à verdade de quem carece de explicação. O romântico tem esperança; o ateu é forte, bravo, e desiludido. Marx foi poeta, cordão que amarra o romântico ao existencialista. "Tão suave, tão fiel ela era, devotada ao céu, da inocência imagem pura, que a Graça teceu." Morreu para encarnar "meu Deus". Eu quis ser descrente, quis ser leal; no meio do caminho, fiquei sem o respeito de ninguém.

Tuesday, December 19, 2006


- O ateu de hoje é uma raça de covardes.
- Lá vem você de novo...
- Sério. Um pouco de atenção. Meus amigos ateus dormiam abraçados a ursinhos de pelúcia.
- E o que isso quer dizer?
- Literalmente, nada. O problema é a imagem; a denúncia está sempre na metáfora. Não suportam a idéia de ficar sozinhos.
- E?
- Bem, odeiam a Deus porque se sentem abandonados.
- Desse ponto de vista...
- O típico ateu moderno depende sempre de alguma salvação. Veja o caso do André. Casou, “quero ter filhos e detesto a idéia de morrer sem ninguém”.
- O crente morre com Deus.
- Ou com alguma outra coisa. O ateu declarado, acovardado, combate o inimigo errado. Sozinho entre iguais, causa da única e mais terrível solidão, absolve a própria raça porque quer preservar a esperança. Órfão de algum pai, que pode ser irmão, amigo ou paixão, busca auto-suficiência como estratégia de preservação.
- O verdadeiro ateu, portanto, desconfia dos homens, e não de um Deus?
- Certamente. Ímpio tem que ter coragem. O ateu que a gente conhece, vazio de reflexão, tem medo do monstro que dorme debaixo da própria cama. Camus diz que Nietzsche nunca afirmou desacreditar num Criador. Pelo contrário, admite sua existência ao reconhecer que está morto. O verdadeiro desprezo de Nietzsche era pelo espírito acovardado.
- Interessante. Você é ateu?
- Depende? De qual ateu você está falando?
- Você acredita nos homens? Ou em Deus? Ou nos dois?
- Bem, suporto a idéia de ficar sozinho. O ateu sincero é sempre um aliado da solidão. Resiste ao isolamento sem recorrer a nada nem a ninguém. O ateu, e não estou falando do cético como categoria geral, ao renunciar a Deus, ou a qualquer idéia de transcendência, repudia a própria falta de explicação. Não são raras as vezes que me aflijo por isso. Também não é incomum, entre os descrentes de Deus, o apelo às instituições. Não acredito no todo poderoso, mas choro, desmontado, na festa de Natal.
- Ainda estou confuso.
- Não acredito no homem, no singular, acreditando num sentido de humanidade, ausente na vida rotineira. Acredito na potência, no laço de amizade que poderia haver. O ateu de fato, descrente dos homens, no plural, única projeção de Deus com a qual podemos contatar, feita à sua imagem e semelhança, é, na verdade, um misantropo. Não recusa a existência da espécie, evidentemente, mas constata que o homem que existe não lhe é suficiente. O homem de que precisa, se houvesse, encarnaria Deus. Essa é a lei da mitologia clássica. Deus e homens separados por um sistema de gradação.
- Você poderia ser mais claro?
- Não sou ateu, porque, apesar de tudo, acredito nos homens, como projeto futuro e coletividade, como potência de sinceridade e perdão. Condenado, Sísifo nunca resistiu à penitência. Desiludido a cada tentativa, descia consciente para perpetuar a própria condenação. Traído pela mulher, jamais deixou de acreditar num sentido de união.
- Mas você acredita em Deus?
- Não sei responder. Passei a vida inteira confiando no meu pai, e isso é indício forte de que preciso acreditar em alguém.

Monday, December 18, 2006


Nunca mais. Dizer que a gente morre, com a morte de cada dia: sou eterno, tudo o que eu conheço escorrerá antes de mim. No limite do que eu sou, enquanto estiver sendo. Foi rápido e para sempre. Subi no armário para fumar escondido. Ficou comigo. E confiei. Porque será assim, sempre desfazendo. A alegria de um aperto de mão, quando apertado. O mundo comporta honestidade; dói saber que só debaixo do travesseiro, numa noite sonhada. Quero me lembrar de tudo isso; quando eu esquecer, não terá sido. O silêncio outra vez. Convite à observação. Grosseria pode ser um cumprimento mal dado, incompreendido. Um cifrão no envelope de agradecimento, no meu aniversário. Não espero, pois não teremos a segunda vez.

Sunday, December 17, 2006


Eu, tantas vezes cético, criticado, por anticristo; eu, inteiramente descrente da vontade dos outros, da felicidade a prazo; sem Deus, com dor; perdido num mundo dividido, confuso e em trânsito; açoitado pela mentira alheia, plantada desde o primeiro dia; eu, por tanto tempo convicto do túnel de luz nenhuma, do corpo de tesão, do amor em traição; rendido às leis da física nuclear, ignorante de todas elas, sem nada do funcionamento do mundo, do sistema que submete o próprio corpo; longe da nave alta da igreja, desconfiado do céu, crítico do perdão, sem julgamento final; bem eu, na fila de espera do apocalipse infernal, querendo um Diabo, com garfo afiado e sapato dourado, folhado em tinta celestial; sujeito arredio, incapaz de confiar, traído em casa, envenenado na escola, estimado no trabalho; abandonado e sozinho no dia da subversão, apedrejado na saída do esconderijo; inquieto e sonhador, com ódio da poesia; seco e formal, doutor em palavras feias, velhas e altivas; eu, bem eu, incessante lutador, guerreiro alucinado, criança embriagada sem tempo de imaginação, com amigos que só foram invisíveis, apesar de tanta contradição; eu, repito: eu, aqui, depois de muita encrenca, de toda a ironia; fui sarcasmo e escárnio, maldito e amaldiçoado, chorão e desconfiado; eu, enganado, órfão da menina mais bonita, do trem voador, do carrinho sem pilhas, do pedaço de bolo de hortelã; eu corri gelado, não quis o primeiro lugar, não banquei a canalha do mundo, esperando meu mundo ser em outro lugar; eu, sozinho, invicto no sorriso orgulhoso, senhor do caminho que era meu; corajoso, descoberto debaixo da cama, quando a noite foi pesadelo, quando cortei o dedo, ou quando perdi a hora de voltar; eu, senhores, eu, tão forte para continuar, tão bruto para defender, tão elegante e direto para negar; com tantas perguntas, tantos xeques e poucos mates; tão eu... Bem, eu, agora, resolvi acreditar. Só um bom Deus para me salvar. De volta, em casa, confiando na televisão; na mesa, saqueado por amigos, vou encantar. Por primeira vez, posso cultuar. Com rituais em branco, missas em pastel, sem limite de sombra e contraste. Reinventado, toco o arco-íris, mudo o tom de voz, corto o ar porque minha busca é redenção. Libertado do mal, poupado do fogo intenso, sem sexo na respiração. A família existe outra vez, a mesa de jantar tem carne sagrada, assada na brasa da madeira defumada. Feliz Natal. Livre, sou o encontro dos outros, pertenço à beleza que não existe em mim; distante de qualquer fado que possa ser meu, sou produto da benevolência do gerente da Criação. Ganhei em semelhança, à custa das minhas proporções. Santificado, bonito e adequado, podendo ser frágil; outros estão recompensados por me proteger. Estou aqui, posso seguir, privado de tudo que só poderia ter tido uma vez. O troco é absolvição. Com novos irmãos. E perfume e flores delicadas; meu paraíso é vasto e atemporal. Meu novo reino é maiúsculo. Limpo e bem-aventurado, com um grande pé de adoração. Vim de um vale regado à lágrima; restituído, sou digno de aceitação. Sou pequeno diante do circuito da Bondade. Sou eterno nas malhas da comunhão. Predico a compaixão, dispenso o temor da fantasia. Mas estou bem e aliviado; o pecado faz parte do passado, e a única tentação que me acovarda tem o doce sabor da terrível desilusão.

Saturday, December 16, 2006

Indeciso, André mudou de caminho. Contornando o canteiro baixo, coberto de begônia, acumulou distância. Rodrigo tentou ouvir; o eco era de uma voz que estava longe:
- Em outubro, perdi minha utilidade. No ano que vem, vou sediar a competição que o mundo espera de mim.

Thursday, December 14, 2006

Floto
Floto en un mar muerto,
floto sin dirección,
floto sin una dirección.
Bajo la mar todo ha muerto,
el cielo se voló,
la luna ya se vendió.
Fuimos de nuevo engañados
con grasa, con grasa,
con grasa de cerdo.
Anorexia, anorexia, anorexia.
Un perro reventado en el arcén
me hizo despertar.
Nada de nada
de nada de nada
de esto jamás cambiará.
Está podrida,
está podrida la mar,
está podrida,
podrida, podrida,
podrida, podrida la mar.
Está podrida.
Está podrida.
Está podrida.

Wednesday, December 13, 2006


Acordei cansado, preguiça de falar. Meses antes, passamos meses falando. Então, grande a vontade de dizer. Ontem, não. Quieto, paciente. Mudando. Na minha direção, no sentido do mundo, sem sentido. Em dúvida, que é isso, diferente na gente, prefere permanecer calado, depois de tanto por dizer. Ruído da solidão, a respiração dos que respiram sozinhos. Estou comigo, estando sem ninguém. Sim, houve. Palavras abertas, fonemas fechados, o sema encoberto. Não entendo bem, por bem que eu entenda. Cruzou, quis me atravessar olhando, pedindo alguma sílaba. Errante. Pouca explicação: cansado. Cansei, posso? Enquanto a vida vem acontecendo, caindo a cada instante, levanto acordado, quero chegar mais alto. Enquanto censuro uma palavra, ecôo nos túneis que não têm fim, finitos dentro de mim. Troco um dia de barulho por um minuto de atenção tímida; ando aguçado. Sem pressa de dobrar a língua. Sem motivo: não quis falar. Cansado. Acostumado, habituado até, a novidade é improvável. Sendo imprevisível. Foi diferente num outro dia. Com outra pessoa. Falei só para poder ouvir a voz; trilha-guia, enquadrou o movimento dos olhos, do cílio à pálpebra enrugada. Tive medo de tanto silêncio; aprendi a ouvir o medo dos outros. Levantei cansado e cansei por ter falado tão pouco. Estou mudando de andar, migrando mudo, vou encontrar lugar? O mundo me quer mudado, tranqüilo, com a freqüência do vento que sopra por aí. Não importa: tomei a primeira lição e, quando eu cair, grito um “ai”, com ou sem alguém para ouvir.

Monday, December 11, 2006

Lucía nunca precisou mexer o corpo para dançar a música preferida. "Nasci na Porta do Sol", num país mediterrâneo. Queimando ou acesa, num brilho que ilumina meu caminho. Coisa estranha, cada pessoa que cruzara sua vida, agora, ou perdida no passado, para sempre, guardava um sentido do "que devo ser". Não por obrigação. Explicação, simplesmente. Cada sorriso sincero, lágrima escondida; cada nova palavra aprendida em sotaque diferente, cada alfabeto revisto, cada som que não era igual, cada "senão" ouvido da língua de alguém; tudo, no intervalo em que se derramava, querendo deixar de ser, tudo me explicava. Lucía num pórtico ensolarado, Miguel na raiva da traição, Ada enciumada, Kaja descoberta, Kadri, Kädi, Mark, Felipe, Víctor ou Rafael - existiram em mim, enquanto existi em alguém. Sempre gostei de paçoca, pelo excesso de açúcar que tem. Balançou a cabeça, "não sei nem quando nem onde nasci", tendo estado, mais de uma vez, diante da maternidade Santa Helena. "Os quatro, um depois do outro", dissera sua mãe. "Pudesse e também seria vizinho do sol". Nascer quente, fervendo, ou gelado, não é escolha que a gente faz. Acontecendo, suamos água, chorando demais, ou secamos o olho, piscando pouco, baixa a temperatura da gota rebatizada. "Lágrima", sentiu, lambendo os lábios, "salgadas, mas boas demais". Foi na terceira série, distante do que estava sendo, agora. "Distante não é ausente", repreendeu Lucía, na língua que falava, com saudade de estar vivendo "já". Que habitaria um "ainda", deitando na cova do "jamais". Ah, senhores. Ah. Quando sentava para seguir com a história sua, quando, de novo, enfrentava o rosto diferente de cada pessoa que amou, em suficientes 15 dias, ao longo de anos compridos e esquecidos, fosse mãe, irmão, sereia ou amigo, fosse gente encarnada estrela no céu, fosse o que fosse, vivo ou entregue, fosse e teria sido já, havido no presente eterno de quando disse "agora". Deixou o caderno, foi até a parede, branca algum dia. Ajeitou a gravura, pensou na tristeza de outro tempo, pensando ser sempre o mesmo tempo de tristeza. "Gosto da vida", buscando, dentro do próprio corpo, o lugar onde a bílis escurecia. "Não espero muito de mim. Serei feliz, estando triste, sendo o saldo final notícia de aventura, contando mais de mim ao que sou hoje e não serei de algum dia em diante".

Wednesday, December 06, 2006


Júlia não disfarçava a atenção. No centro da pista, sozinho, em movimentos torcidos, borrados no excesso colorido da fumaça bagunçada, Víctor não dividia o mundo com ninguém. Quando o cabelo escorria para um lado, os dois pés, num calçado rasgado, apontavam para o Sudeste, num ritual de auto-negação. Será? Quero sair do corpo, correr no tempo da música, numa onda que não termina em mim. Ser música é ainda mais bonito que ser oceano. Meu Deus, posso ser assim fora daqui? Teve vontade de levantar. Sabia o refrão, lembrou. Se eu chegar perto? Costurado em timbres desencontrados, boneco de pano tendido em cordão que a gente não vê, Víctor dobrava o braço, em auto-afirmação. Olhasse para trás, traísse a música de três acordes e dois minutos e meio... Quem sabe? Uma vida de paixão. Escondido na própria fantasia, extasiado com o próprio sorriso, num ritmo de olhos fechados, foi o beijo que nunca seria. “Christine Norden”! – Júlia pensou, encorajada. Foi em direção, um passo para cá, uma esperança largada na ponta de lá. O amor existe assim, diferente, no silêncio fantasioso de cada um. Impossível, perde-se no confronto da própria condição, que é coincidir. Víctor andou para trás, tremeu a mão, contornou o ar, as formas de um desenho de criança. Bonito, o pop que tocava no fundo, tocando em mim, aqui dentro. Som alto, ar quente. Júlia mexeu a cintura, confundindo a dança de quem? Juntos? Talvez. Não esperou por uma segunda vez. Quando o refrão foi mais alto, e a noite mais confusa, chegou perto, respirou tão decidida que o olho abriu. Um frio. Víctor sentiu e duvidou. Tão linda, menina; o melhor que existe em mim depende de uma noite imaginada, quando balanço acordado.

Tuesday, December 05, 2006

Na parede da sala de Xavi.


- David, David, eres un vendaval, chaval. Bueno, ya lo esperaba, siempre atento, muchas veces crítico. Ves? Si me lo preguntaran, seguro que se lo diría. A qué viene eso ahora? Ya, ya, no te enfades, sigo igual, creo. Un poco diferente, quizás. Hombre, dónde estará el que no habrá cambiado? Al menos una renuncia, sólo una... Bueno, algunas. Vamos, y tú? Qué va! Ya veo, sigues igualito; no, no, estás más guapo, joder! Verdad, no? Son las chavalas, he? Qué polla la tuya, macho!

Tinham crescido juntos; que outra impressão? O movimento das mãos, os sintagmas bem arranjados, a opinião explicada com inteligência, a pressa de virar o mundo, a saudade que doía, a vontade de refazer pela terceira vez, a dúvida saudável, a convicção de uma vida livre do privilégio dos outros, as poucas relações sinceras, o desprezo pela covardia dos ex-melhores amigos, as trocas e os conselhos negligenciados, as brigas bobas, o orgulho de quem vale muito. Xavi podia ver tudo de novo, com saudade de quando, juntos, descobriram o valor que existe na palavra amizade. Tinha pena agora, e uma ponta de vergonha: abraçara a cobrança do mundo em nome de causa nenhuma. Ouviu de novo o ruído dos anos que atravessou diante da televisão. Leu cada linha das páginas que só soube escrever nos intervalos do trabalho, longe do domínio da mulher, na casa entediada. Escutou o silêncio da esposa quando de algum violento comentário inteligente. "Estava com ela no último encontro; David olhava com olhar de piedade". Soube de tudo isso, enfraquecido, distante do que melhor viveu na vida. Não via tempo para mais nada; a gente se suicida quando censura a alegria aos 24 anos. Olhou de novo, David estava ausente, tendo estado tão presente um dia. Inteiro num universo mágico, permitido só para ele. Os cílios compridos, o cabelo desgrenhado, uma vida tomada como desafio, em nada obrigação. Xavi sentiu os pulsos amarrados, refém de uma culpa que disseram ser "opção sua". Não foi, juro que não. Receei: quando vi, tinha sido. Pelo menos você, David. Diga que entende! Era para ser aventura, caramba. E foi desilusão. Apaixonado por Penélope, estudante fascinante do seu romance novo, apresentada na página 66, David andava desinteressado da roda dos demais. Um sim, ou não, pouca coisa mudava-lhe o estado de atenção. Quis verdade, entrega, lealdade. Buscou refúgio nos livros, pediu perdão pelos próprios pecados, talvez houvesse um paraíso negociado. Desistiu, o céu tinha de ser inventado. As ruas tinham cores, ainda havia motivos então. Escreveu uma primeira vez para não largar mais. Matou um bode num primeiro parágrafo; viu que o bicho não levantou jamais. Comeu uma gorda loira num terceiro capítulo; gozou sem outra igual. Correu num jardim laranja até cruzar o sol. Vestiu asas e desmontou a luz lilás. Teve sede. Teve frio. Lavou o corpo com sorvete. Cuspiu quatro pepitas de ouro. E congelou. Foi mais velho; até rebatizou. Nasceu pela vigésima vez.

- David, hombre, qué pasa? Dónde estás, macho? Y si me apunto a tu mundo?
- He, Xavi, he, no seas pesado.
- Te acuerdas del tema aquel que solíamos cantar de pequeño?
- De quién?
- Los Planetas, me parece.
- Claro, chaval. Te refieres al de "Corrientes circulares en el tiempo", verdad?
- Te acuerdas del estribillo?
- Por supuesto, macho.

Os dois mediram o tempo na ponta da língua, contaram o compasso e, melancolicamente:

- "Las secuelas de los viejos días
estarán conmigo el resto de mi vida..."

Friday, December 01, 2006


Porque algumas coisas em mim preferem encarnar palavras. Gente faz graça em público porque prefere chorar sozinha. Não é difícil contar piada boba. As pessoas falam de trabalho, comparam preço e salário, "sou menos recalcado". Disputam tudo, renunciam à amizade. Morrem mais rápido, e em dobro, porque se afogam no desespero de alguém. Meu paraíso individual. Disfarçam os sonhos de criança; cada dia acumulo mais vingança. Na porta de casa, se posso estar em mim, menos vigiado, penso em tudo o que abandonei. Vestem o desejo. Apostam nos cachorros; hei de ter alguém. Convivem, há de ser assim. Querem o céu, sem querer qualquer perdão. O pesadelo tem lobisomem quando a lua é cheia. O disco risca quando a letra chama a atenção. Que conversa chata. Não leio livro algum. Prefiro um filme idiota. Entendam, esse lugar não é para mim.

Dei dois passos e parei. Chorei um pouco. Pouquinho. Descobri o lugar de onde eu via o céu redondo. A primeira vez, tendo sido a última. A primeira imagem: houve uma mãe para todo mundo. Ainda assim, órfão. Porque houve, acho. Olhei de novo, do alto de uma montanha de terra batida. "Grita", disseram. Assobiei, medi o eco; queria perder o medo no meio de uma imensidão. Quase me perdendo antes. "Parece um pássaro", a minha voz. Abri os braços, grande outra vez. Meu mundo feliz sempre foi redondo, no traço azul de um giz esverdeado. Voei com os pés no chão; para ir longe, vou longe em mim. Eu era mais, numa vida de subtração. Saudade da tia Sandra. Fiz uns parênteses, quis parar o relógio, a entrega do momento, queria lembrá-lo para sempre, enquanto houvesse eu.

free web stats