Sunday, December 17, 2006


Eu, tantas vezes cético, criticado, por anticristo; eu, inteiramente descrente da vontade dos outros, da felicidade a prazo; sem Deus, com dor; perdido num mundo dividido, confuso e em trânsito; açoitado pela mentira alheia, plantada desde o primeiro dia; eu, por tanto tempo convicto do túnel de luz nenhuma, do corpo de tesão, do amor em traição; rendido às leis da física nuclear, ignorante de todas elas, sem nada do funcionamento do mundo, do sistema que submete o próprio corpo; longe da nave alta da igreja, desconfiado do céu, crítico do perdão, sem julgamento final; bem eu, na fila de espera do apocalipse infernal, querendo um Diabo, com garfo afiado e sapato dourado, folhado em tinta celestial; sujeito arredio, incapaz de confiar, traído em casa, envenenado na escola, estimado no trabalho; abandonado e sozinho no dia da subversão, apedrejado na saída do esconderijo; inquieto e sonhador, com ódio da poesia; seco e formal, doutor em palavras feias, velhas e altivas; eu, bem eu, incessante lutador, guerreiro alucinado, criança embriagada sem tempo de imaginação, com amigos que só foram invisíveis, apesar de tanta contradição; eu, repito: eu, aqui, depois de muita encrenca, de toda a ironia; fui sarcasmo e escárnio, maldito e amaldiçoado, chorão e desconfiado; eu, enganado, órfão da menina mais bonita, do trem voador, do carrinho sem pilhas, do pedaço de bolo de hortelã; eu corri gelado, não quis o primeiro lugar, não banquei a canalha do mundo, esperando meu mundo ser em outro lugar; eu, sozinho, invicto no sorriso orgulhoso, senhor do caminho que era meu; corajoso, descoberto debaixo da cama, quando a noite foi pesadelo, quando cortei o dedo, ou quando perdi a hora de voltar; eu, senhores, eu, tão forte para continuar, tão bruto para defender, tão elegante e direto para negar; com tantas perguntas, tantos xeques e poucos mates; tão eu... Bem, eu, agora, resolvi acreditar. Só um bom Deus para me salvar. De volta, em casa, confiando na televisão; na mesa, saqueado por amigos, vou encantar. Por primeira vez, posso cultuar. Com rituais em branco, missas em pastel, sem limite de sombra e contraste. Reinventado, toco o arco-íris, mudo o tom de voz, corto o ar porque minha busca é redenção. Libertado do mal, poupado do fogo intenso, sem sexo na respiração. A família existe outra vez, a mesa de jantar tem carne sagrada, assada na brasa da madeira defumada. Feliz Natal. Livre, sou o encontro dos outros, pertenço à beleza que não existe em mim; distante de qualquer fado que possa ser meu, sou produto da benevolência do gerente da Criação. Ganhei em semelhança, à custa das minhas proporções. Santificado, bonito e adequado, podendo ser frágil; outros estão recompensados por me proteger. Estou aqui, posso seguir, privado de tudo que só poderia ter tido uma vez. O troco é absolvição. Com novos irmãos. E perfume e flores delicadas; meu paraíso é vasto e atemporal. Meu novo reino é maiúsculo. Limpo e bem-aventurado, com um grande pé de adoração. Vim de um vale regado à lágrima; restituído, sou digno de aceitação. Sou pequeno diante do circuito da Bondade. Sou eterno nas malhas da comunhão. Predico a compaixão, dispenso o temor da fantasia. Mas estou bem e aliviado; o pecado faz parte do passado, e a única tentação que me acovarda tem o doce sabor da terrível desilusão.
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