Friday, September 28, 2012

Vi a mensagem de D. num Starbucks da Callao. Ficamos de combinar alguma coisa, mas precisei sair mais cedo, para ver alguns livros e Buenos Aires. Então, quando li a última resposta, depois de aceitar todas as condições para usar o wi-fi, fui meio depressa procurar um lugar de onde eu pudesse fazer a chamada.
Muita coisa estava fechada, sem sistema. Passei por uma rua, onde, em 2007, a praça ainda não estava cercada. Foi curioso. Olhei, lembrei. E imediatamente corri para ver se a livraria onde comprei La joven guardia, por sugestão do vendedor, continuava no mesmo lugar.
Perguntei num kiosko por algum telefone. Pediram para eu virar na próxima rua à direita. Entrei, pedi uma cabine e disquei o número de D., que atendeu, reconhecendo minha voz. Ou o meu sotaque. Estava perto, no centro, e lembrava que D. tinha reclamado da confusão de morar no meio de tudo. Disse que descia em 15 minutos, para a gente se encontrar em frente à livraria Hernández. No dia anterior, tinha comprado o siglo XX na loja, que até me deu um livro de graça. A cidade ainda tem muitas e charmosas livrarias. O dono realmente lê e tem sempre boas sugestões para guiar o passeio pelas prateleiras, frequentemente desorganizadas.
Caminhamos até o apartamento, num edifício antigo, numa rua apertada. Do lado de fora, e mesmo do hall de entrada, com diversos detalhes do começo do século XX, a sensação é de estar a alguns minutos de um apartamento gelado e escuro. Quando D. abriu a porta e demos surpreendentemente com um vitral aconchegante, entendi que um projeto como o que D. vinha desenvolvendo há anos traduzia um espaço claro e uma harmonia fiéis à euforia que eu estava sentindo ali. Muita alegria, fascinação, e em paz. D. mostrou os cômodos, explicou um pouco o ritual de cada um deles, até chegar no seu quarto de criação. Foi quando conheci Mumi, gatinha manhosa, mas simpática, que, a partir de então, passou a acompanhar nossa tarde: da mesa ao chá na cozinha, do sofá à vitrola. 
D. tinha recebido um vinil do Japão, registro de uma colaboração sua com um artista de lá. Estoy planeando mi viaje a Japón - vienes? Um poema. Ficamos ouvindo em silêncio, enquanto a água esquentava no fogo e eu me convencia de que algumas decisões nossas, nem sempre as mais importantes - muitas vezes elas -, nos levam exatamente para onde precisamos estar. Por uma tarde. De verdade, pode significar o começo de uma vida inteira.

Wednesday, September 26, 2012

Foi nesse ponto que deixamos nossa última conversa, brincou J., depois de um "epa, epa, epa". Onde foi mesmo? 
Tinha razão. Enquanto passeávamos por Pinheiros, experimentando as coisas velhas da Benedito e um café ruim da Teodoro, falamos das mudanças que custam um esforço que a gente mal sabe medir; é fazer ou fazer. Cuidado, Pedro, depois, esse problema, que talvez não tenha começado com ou em você, vai virar seu. E vira. E você vai fazer outra viagem, vai arranjar outro trabalho, vai arriscar uma nova namorada... E a confusão vai continuar no mesmo lugar. Talvez de um tamanho e com consequências diferentes, mas com você. 
Impressionante: J., desde as primeiras e rápidas vezes em que conversamos, tinha as senhas do atalho que,  reto e direto, dava no meu estômago. Realmente impressionante. Sabia onde tocar, deixando claro o que deixava quieto para não doer demais. 
Levantei e mudei um pouco de assunto, trazendo os outros para a conversa. Fui até a janela, olhei as luzes em efeito néon ziguezagueando na avenida distante. Observei o campo que ficava logo em frente ao prédio, vi que Buenos Aires ainda tem muito mais estrelas. Tranquilo aqui, né? 
J. permanecia sentada, com N. no colo. Estavam os dois com sono, N. dormindo. S. me chamou para ver o resto do apartamento, olhar o quarto de N. e o terraço-barco. Subimos umas escadinhas, no estilo dessas que dão para sótãos em casas grandes. A porta é no teto, a sensação é mesmo a de estar mais perto do céu. Imaginei que, dali, de um lugar daqueles, numa noite gelada dessas, é bem provável ouvir alguma coisa muito parecida com a música que S. faz. Lindo, no?!
Talvez seja o frio, que estava muito forte; talvez seja a proximidade do mês do meu aniversário, talvez seja São Paulo e a pouca generosidade do ritmo e das relações de lá, mas, ali, com J., S., N., H. e C., as conversas e os gestos pareceram muito mais com o que deveriam ser. Amizade, música, cambios, territórios compartilhados e disponibilidade. Estamos aí, vamos aproveitar? Coincidimos em lugares, ideias e projetos -  vamos agradecer?
Nos vemos a la vuelta

Tuesday, September 25, 2012

Estava difícil conseguir uma cabine telefônica para fazer a ligação. Era feriado, os locutórios, as lojas, tudo meio fechado. Até o tempo, nos outros dias tão claro e iluminado, andava nublado, com um vento gelado cruzando a gente por todos os lados. Coloquei o capuz; fiquei na dúvida se H. me acharia assim.
Combinamos na esquina da Santa Fé com a General Díaz. Passou pouco mais de 10 minutos, e estávamos todos lá, conforme combinamos 10 minutos antes, numa chamada curta, a única que consegui fazer de um kiosko bem vagabundo. Quando estava saindo, a moça quis me dizer que os clientes estavam atrapalhando seu serviço de limpeza. Não termino de varrer hoje. Fingi que não era comigo - no fundo, não era mesmo. Ela estava trabalhando num feriado enquanto eu estava em férias.
H. gritou meu nome, cantado, do outro lado da rua. Peeeedro!
Reencontrar H. é sempre um sopro de esperança nas coisas e nas pessoas que podem fazer do mundo um espaço onde eu caibo. Depois de alguns dias dando voltas por Buenos Aires, revendo lugares, revendo pessoas que estiveram comigo em alguns desses lugares, imaginando onde estariam, se estariam, pensando no tanto que quisemos e sonhamos fazer enquanto estávamos juntos, tive certeza de que a fragilidade das coisas é justamente o processo inevitável que, em cada uma delas, nos faz perder a certeza das coisas. Ficar mais velho é assim. Não tenho mais certeza de nada, confio cada vez mais em menos pessoas e leio. Leio muito e de tudo. Porque não entendo de mais nada; o mundo foi ficando difícil e poucas coisas conseguem se passar por naturais.
Falei um pouco disso, em outras palavras, enquanto almoçávamos num restaurante árabe, em Palermo. Quisemos contar um pouco de como andam as coisas do lado de lá. O que tinha mudado, alguma coisa permaneceu? Demos risada; a namorada do H. até colocou a mão na cabeça, muita coisa anda tumultuando a minha. Ela percebeu.
Esticamos a conversa, as curiosidades, as recomendações e a amizade, até o garçom avisar que a cozinha estava encerrando e que faltava pouco para o restaurante fechar. Foi bom. Saímos para andar e visitar algumas livrarias; pedi algumas dicas, sempre gosto de ler literatura argentina contemporânea e nova. De alguma maneira, ou de muitas, acho que daria um bom personagem de um livro portenho. Mesmo que fosse como estrangeiro. Ando nas ruas frias e vazias, mais a melancolia, que, com certeza, é o código que me leva para perto, de um jeito bem confortável, de personagens como H. "Es un personaje", lembrou H. da expressão que eu usava anos atrás, ao descrever um amigo de uma banda também da cidade. Caçamos alguns nomes entre as prateleiras, consultamos vendedores, H. recebeu uma lista com sugestões de um amigo seu e cansamos do frio. No meio do caminho, amanhã a gente se fala, deixei um beijo nos dois e entrei para tomar um chá num café de esquina. Li um pouco de Damián Ríos, pensei na música de Federico Durand e não disfarcei o olho molhado, de leve, em homenagem a tudo que mancha a gente de saudade. 

Saturday, September 08, 2012

Aprendi diversas coisas com a Thaís. Vivia falando de bicho, de cachorros em especial. Quando podia, e era praticamente sempre, colocava ciência onde, sinceramente, nunca achei que precisasse existir qualquer coisa parecida. Por exemplo, um vinho com pão e queijo. Para mim, era isso. Um vinho, um pão, uma conversa deliciosa. Quem precisa mais do que isso quando escolhe fazer isso?
Thaís me ensinou a não prestar tanta atenção a tantas coisas. Não sei se era realmente uma preocupação com o jeito exageradamente sério com que eu via as coisas, ou se era ciúmes. Mas ajudou. Consegui, aos poucos, achar menos essencialmente importante saber se a opinião de alguém era de fato a opinião de alguém. Foi difícil, mas entendi que as pessoas leem o que querem, pelos motivos que quiserem. 
Uma vez, num restaurante em Perdizes, achamos meio sem querer, sentamos para tomar alguma coisa, acabamos comendo bastante. Thaís pediu um risoto de mandioquinha e carne seca, eu pedi um linguado. Bebemos cerveja. E, brindando com cerveja, Thaís falou de uma coisa simples, cheia de sentido, esquecida para mim, para um monte de gente, que decidi não esquecer jamais. Na hora de brindar, ela disse, vamos celebrar sempre alguma coisa que esteja ao nosso alcance, aqui, com a gente. Perto e importante.

Monday, September 03, 2012

Saímos do metrô e sentamos num café bem perto. Fazia tempo que a gente não se via. Uns quatro anos, pensei. Saiu para morar fora; fiquei. Estava viajando durante as férias dela em São Paulo. Bogotá. Depois, entrei no mestrado, ganhei uma bolsa porca e fiquei alguns anos sem sair do Brasil. Dois anos, acho. 
Falamos pouco, poucas vezes, por e-mail. Inclusive, numa dessas mensagens, Sandra pediu para eu ler Coetzee, e eu com tantos latino-americanos na fila, com toda uma nova narrativa argentina na frente, além de todos os Habermas que precisava entregar semanalmente na faculdade. Não li. E falamos menos ainda.
Perguntei sobre a decisão de ficar na França. Da última vez que tínhamos coincidido em São Paulo, dissera que tinha saído tarde demais e que era impossível não pensar nas coisas que estavam terminando por aqui. As tardes entre amigos, nos sábados, nos domingos; os ensaios da banda com os irmãos, o sobrinho, os programas, o cinema, a música, o futuro inteiro, que era presente do lado de lá, e que nunca seria o que tinha imaginado que seria aqui. Foi difícil, disfarçou com um gole de Coca, mas, do jeito que tinha arranjado as coisas, as pessoas, o salário, o jeito de continuar, era praticamente impossível colocar novamente em risco o que eu tinha aqui pelo que eu já não tinha lá. Caramba, pensei, parti um pedaço do bolo, de um chocolate amargo e doce demais. Você sabe, completei, no tempo em que morei fora, mais curto, tive medo de um monte de coisas, porque, no fundo, o mais complicado é aceitar que não damos pause em nada, que o nosso mundo nunca esperou nem vai esperar pela nossa volta, que o nosso mundo não existe lá fora, fora da gente, que as coisas estão aqui - coloquei a mão no peito - e são só elas que a gente carrega quando entra num avião para cinco anos fora, ou num ônibus para um fim de semana no interior. 
Sandra olhou para o resto de bolo. Por que a gente se falou tão pouco esses anos todos? Por que a gente se falou tanto antes de eu viajar? Discordei em parte, porque fazia tempo já que não aparecia nos encontros de sábado da sua casa, lembra? Inclusive, foi uma baita surpresa ler sua convocatória para a festa de despedida. Cheguei com algumas garrafas de cerveja, que comecei a beber pelo caminho, porque sabia que chegaria meio sem graça, meio tímido da ausência longa, sem muita explicação. Andava meio avulso, sou meio avulso, mas fiquei sem jeito de dizer que não cabia entre as discussões sobre o controle do petróleo na Venezuela, a semiótica para uma educação mais justa, a Comuna de Paris ou as sociedades sustentáveis, tomando cerveja e ouvindo música boa, tão boas justamente por existirem, antes e depois, alheios a todas aquelas discussões. Não sei. Na verdade, não sei dizer por que também leio muito disso, porque me matriculei num mestrado, se, no fundo, acho que a revolução não sai do meu quarto, tamanho o receio e o pudor de trazer alguém, sem receio e sem pudor, para o lado da gente.
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