Monday, January 28, 2008

Na porta do vagão, observando o cordão de gente escorrendo pela escada. Todo dia, o mesmo tumulto, sem saber quem está fugindo de casa, ou simplesmente voltando do trabalho. Mas tratava de entrar depressa, ser o primeiro a passar a porta da estação Barra Funda. Ali, enquanto todos corriam por um banco, Rogério, esguio, colete de lã, dobrava a porta e ajeitava-se à entrada, no vão onde ficam os anúncios de curso de inglês com professores da USP. No cantinho, viajava seguro até a Sé, onde, infelizmente, o caminho pedia baldeação. A cada parada, observava quem entrava, apertado com o número de pessoas, crescente. E foi na República que o trajeto igual de dias tão parecidos ficou diferente. O vagão ia cheio, curiosamente com espaço fora do comum. Na mesma posição, de onde saía com facilidade todos os dias, e sem pisar no pé de ninguém, viu a garota atrasada, o risco do degrau, esbaforida, com duas sacolas, uma em cada mão, a malha vermelha, cabelo no rosto, espera que eu vou. Rogério, sem saber por quê, fez com a mão, atravessou a porta, pouco de força, aberta, e ela entrou. "Obrigada", ouviu dizer, de olho na marca fina e comprida na sombrancelha esquerda. "Bonita", pensou. E, nas caixas de som, em voz rouca e desagradável, a advertência do condutor, "Não impeça o fechamento das portas. Prejuízo à viagem de todos os passageiros". Rogério, a menina, os olhos dos dois nos olhos de cada um; na boca, o sorriso sem graça, o calor e a cumplicidade. "Muito obrigada".

Wednesday, January 23, 2008

O beijo e todo o desejo deixados de lado, à beira da cama.
- O que foi?
Érika sorriu um pouco. Pela cor dos olhos, pelo brilho aguado, as mãos inquietas por cima do colchão, percebeu: alguma coisa errada. O esticado da boca, o contorno novo ao redor dos lábios: quase chorando.
- Mas... Tava tão bom. A gente, os dois... foi alguma coisa que eu disse?
Na festa, na pista de baixo, as luzes coloridas, a música excessivamente alta, o cruzamento no meio da bagunça, finalmente o tesão. Luis e Érika. Érika e Luis. Um pouco de água no seu copo, um beijo na nuca, a mão por trás, a mordida na orelha, a mão pela frente, o braço em volta, o sentido desordenado, que bom. E não teve tempo para dizer o nome, sem intervalo para adivinhar a batida, tudo tão rápido, urgente, tudo tão álcool, não precisa dizer agora, teve botão desabotoado, bebida derramada, cabelo na língua, dente roçado, ah, era tudo o que eu queria. Na saída, eu pago a comanda, você beija bem, táxi, táxi, tem como, ah, vai, eu vou, se o beijo é bom, o F1, aqui mesmo na Consolação. O decote derrubado, o mamilo tragado, vai com calma, ah, vai, a recepção, casal, não tem reserva. E o elevador, o andar errado, sobe mais, querendo pelada, não tem mais graça de roupa, pela escada, vai, vai, aqui, então; não, não, mais dois degraus, debruçado, tanta fome e tanta sede. A porta, a chave, deixa eu ir até o banheiro.
- Não sei. É que eu não consigo mais. Desculpa. Não consigo. Isso. Parece pouco, eu sei. Mas é muito pra mim. Juro que tem sido demais.
- Achei que tava bom. Não faço alguma coisa parecida tem tempo já. Juro. Maravilhoso. Bom mesmo. De verdade, até.
- Desculpa. Você parece legal. Mas não é por aí, não. Com você, quero dizer.
Luis abaixou a cabeça, desejo contido, pra lá de confuso.
- Não é. Trabalho o dia todo e não sou feliz. Namorei seis anos e não fui feliz. Compro roupa, disco e livro. E não sou feliz. Blefo o tempo todo. Troco de celular. Faço happy hour, absolutamente convencida de que não ando feliz. Me arrumo. Faço regime. Então, como três, sete barras de chocolate. Light. E não sou feliz. Pinto o cabelo, levo três horas para fazer a unha, fico inteira depilada, uso alguns cremes e o mesmo perfume. Aí, entro num táxi, combino com um casal de amigos, às vezes um doce, às vezes só o peguinha mesmo. E não sou feliz. Queria amar a vida que tenho, mas não consigo. Porque não me faz feliz. E sei que tinha como fazer.
- Comigo também...
- Não, não, juro. Dessa vez, não é. Não é mesmo - pode ter certeza.
- É, sim. Quero dizer, não é em relação a você. Digo: não, o meu problema não é para você, com você. É que isso que você tá falando é comigo. Entende? Isso tudo, que não era para ser tão grande, é enorme comigo também, sabe? Não, não sei, acho que tô sendo confuso. Não, não. É... Desculpa. Comigo. Também não ando feliz, caramba. É isso, é não andar feliz que é comigo. Também.
- Não muda as coisas. Se, por um incrível acaso, doesse em você como dói em mim - e com certeza não dói -, não diminuiria nada. Eu realmente queria amar a vida que tenho. E não consigo. Desiste: te conheço há 50 minutos, você não tem como tentar por mim.
- Não, não é nada disso. Você não entendeu. Tô aqui por um problema meu.
- ?
- Quer ouvir?
- ...
- Quando estava saindo para a festa, liguei para avisar. A gente faz isso de vez em quando. Ou fazia, vai saber. Só precisa avisar. Avisar a Andréia, digo. E ela me avisar. É como funciona. Mas, quando liguei para dizer, "avisar", o celular tocou, do lado, na estante onde deixo uma coleção de míni-craque. Ela viajou e esqueceu o telefone em casa.
- E você chegou a "avisar"... suponho que... "mulher, namorada"?
- Não precisou.
- Tá com culpa, é isso.
- Não. Nada parecido. É que, sem querer, lembrei que ela tinha viajado, entende? Esqueci que a Andréia viajou, você consegue perceber? Esqueci que a mulher que eu amo viajou... Acredita? A gente se acostumou a depender um do outro, saca? A saudade que eu sinto foi acostumada. E hoje me dei conta de que esse tipo de saudade a gente esquece.
- Dependi demais também. E, no final, amava de menos.
- Na verdade, acho que meu problema é enfrentar um cinema sozinho.
- O tempo todo gripada...
- Ân?
- Eu, o tempo todo resfriada.
- Temporada de gripe, né?
- Duas vezes. Tenho tudo do papel da ruivinha.
- Andrés Caicedo, espécie de Kerouac colombiano - não sei se você conhece -, se matou aos 25 anos. Viver mais era insensatez.
- 28.
- 27.
- Um pouco atrasados.
- E mais covardes.
- Meu medo é terminar no negativo. Gastar tudo que foi bom num mar salgado. Dar corda para o tédio e me acostumar.
Luis vestiu a camisa.
- Você ficou com tesão?
- Em você?
- É. Ficou?
- Rápido. Depois lembrei que ando sem tesão em mim.

Wednesday, January 16, 2008

Quando acendeu a luz, falei "inflamável". Se, acordado, fosse assim. Dizendo o que sinto. Juli, assustada:
- "Inflamável"? Medo de fogo, agora?
- Queimando. O fantasma no escuro.
- Acordado?
- É isso. Queimo mais rápido quando falta luz - a brisa da noite alastra o fogo. O minuto dormido passa depressa, correndo. Debaixo da lua, fico sem acreditar no que enxergo sob o sol. Um estranho projeto de chama, apagado. Você me entende quando digo "antes"? Entende? Que quando digo "antes" é saudade de mim?
- Inflamável, é isso?
- Inflamado já. A vida está aqui - e apontou a queimadura, legado da George Foreman, na noite anterior. E não vejo trégua. Vou ardendo até o fim.

Friday, January 11, 2008

"...tomando consciência de que abandonava muito mais do que uma mulher, duas crianças e uma complicada teia de sentimentos tempestuosos (...) O divórcio substitui na era de hoje o rito iniciático da primeira comunhão: a certeza de amanhecer no dia seguinte sem a cumplicidade das torradas do pequeno-almoço partilhado (para ti o miolo para mim a côdea) aterrorizou-no no vestíbulo. Os olhos desolados da mulher perseguiam-no pelos degraus abaixo: afastavam-se um do outro como se haviam aproximado, treze anos antes, num desses agostos de praia feitos de aspirações confusas e de beijos aflitos, no mesmo turbilhonante e ardente refluxo de maré." (Memória de elefante)

Wednesday, January 09, 2008

Gosto dos tempos que não precisam muito coisa. Dos advérbios também. Muitas vezes, é só a maneira como a gente usa. "Antes", por exemplo. Lírico o "antes" que não diz bem quando.


Antes, bem antes, quando passava as tardes no quintal de casa, sem ter que trabalhar. Alimentei tartaruga, cacei formiga com um pote de cola branca, deitei no chão frio, apoiei a cabeça numa barriga de dálmata, vi o programa da tarde, mãe!; queimei folha de limoeiro, espremi pitanga, nadei num cercadinho de plástico, fumei (escondido), armei uma armadilha, fui segundo lugar no quarteirão-cross, montei uma banquinha de brinquedos velhos, rolei com irmão, belisquei irmã e testei a internet mais tarde - para não parar de avançar sobre o computador. Nesse tempo, agora batizado tão modestamente, sobrava projeto de vida. Gastando as horas com fantasia. Um dia, na expectativa de que houvesse sentido para o mundo, limpei o pó, sacudi caixa, abri álbum e guardei, por sorte, o mistério de três fotografias. Ingenuamente - e sem plano de tornar a encontrá-las anos depois -, escaneei um pouco da história da família. Foi leve e engraçado. Hoje, tropeço num cd back-up não identificado, nó na garganta: o reencontro com tanto sépia afirma a saudade do meu tempo, cabendo mais e mais no tão vago e tolerante "antes".

Tuesday, January 08, 2008

- ¡Señores, señores! Por favor, señores. Sólo os pido que salgáis de este cuadrado. Si queréis, sin ropa, desnudos de odio y maldad. Ah, queridos, si supierais, por Dios... Que hay mucho que fantasiar en esa vida rara, millones de secretos perdidos en el mundo-rincón imprevisible. Quise vida, gente triste. Me planteé moldar las nubes. Y los inmensos dolores que sentí, el gigante y eterno deseo por domesticar... Incomparables. El amor, el adiós, la sorpresa, la Sífilis, los viajes, el sueño de cada noche, los geranios amarillados, el invierno gris, la infinita posibilidad de universo e imaginación. La belleza de haberme transformado a mí misma en una galaxia de exaltación. El paraíso me lo hice aquí. Por cuenta. Me gasté la vida con momentos que me hicieron feliz. Trozos míos viven riéndose por ahí. Soy las cosquillas en vuestros labios en la noche de Navidad. El sol que me iluminó. O pura y sencillamente la señora-limosna buscando salvación. No os molestéis por una gorda errante. Ni por un minuto, señores. ¡No lo consideréis! Tenéis la vida muy arreglada y una felicidad demasiado bien guardada para mancharos el pensamiento con las palabras sórdidas de una perturbada anciana. Os hablo por deber y educación, pobres. Sobre todo, educación.
- ¿Mami, mami, por qué nos grita la señora?
- Nada, cariño, nada. Es loca, hijo mío; no le hagas caso.
Esquisito. Tinha dias que não passava da mesma página do livro. O incômodo com o episódio não censurava a curiosidade. Lendo, lá para o fim da página, sentia isso que as pessoas apelidam de "vazio". "Não sei, Raul, é um vazio, meu bem" - disse Rosana, muito longe dali, dias antes de pedir "separação". Com o livro, vinha sendo semelhante. Na falta de um texto melhor, Lucas repetia, de olho fechado: "é um vazio, caramba". Sem acreditar em Deus, acreditando em mágica, amizade e literatura. Mas há coisa de semana, na página setenta e seis, depois de tomos e tomos de ficção pior, estava interditado, no meio de uma história disposta a contar mais. A vida, acho. Engasgada. Não é nada com o livro, não. O tédio é meu. E saindo do trabalho, deixando a arquitetura moderna da agência onde todo dia venera o nada; pensando no tanto da vida que seca no caminho - também em nome de nada -, avaliando as trocas, barganhas e renúncias, "você será feliz com mulher, família e trabalho". Não, tia Flori: cresci, minha santa. Casei, um pequeno filho, o Gabriel. E mais de semana, Dinda. As páginas do livro parecem sempre iguais. Subindo a Cardeal, contrafluxo, os carros descendo, a fumaça no rosto. Na mão fechada, o brinquedinho moderno, da cor da agência moderna, brinde da promoção da Kibon: a esperança de afogar a desgraça nos minutos e meio de um punhado de mp3s.
free web stats