- O ateu de hoje é uma raça de covardes.
- Lá vem você de novo...
- Sério. Um pouco de atenção. Meus amigos ateus dormiam abraçados a ursinhos de pelúcia.
- E o que isso quer dizer?
- Literalmente, nada. O problema é a imagem; a denúncia está sempre na metáfora. Não suportam a idéia de ficar sozinhos.
- E?
- Bem, odeiam a Deus porque se sentem abandonados.
- Desse ponto de vista...
- O típico ateu moderno depende sempre de alguma salvação. Veja o caso do André. Casou, “quero ter filhos e detesto a idéia de morrer sem ninguém”.
- O crente morre com Deus.
- Ou com alguma outra coisa. O ateu declarado, acovardado, combate o inimigo errado. Sozinho entre iguais, causa da única e mais terrível solidão, absolve a própria raça porque quer preservar a esperança. Órfão de algum pai, que pode ser irmão, amigo ou paixão, busca auto-suficiência como estratégia de preservação.
- O verdadeiro ateu, portanto, desconfia dos homens, e não de um Deus?
- Certamente. Ímpio tem que ter coragem. O ateu que a gente conhece, vazio de reflexão, tem medo do monstro que dorme debaixo da própria cama. Camus diz que Nietzsche nunca afirmou desacreditar num Criador. Pelo contrário, admite sua existência ao reconhecer que está morto. O verdadeiro desprezo de Nietzsche era pelo espírito acovardado.
- Interessante. Você é ateu?
- Depende? De qual ateu você está falando?
- Você acredita nos homens? Ou em Deus? Ou nos dois?
- Bem, suporto a idéia de ficar sozinho. O ateu sincero é sempre um aliado da solidão. Resiste ao isolamento sem recorrer a nada nem a ninguém. O ateu, e não estou falando do cético como categoria geral, ao renunciar a Deus, ou a qualquer idéia de transcendência, repudia a própria falta de explicação. Não são raras as vezes que me aflijo por isso. Também não é incomum, entre os descrentes de Deus, o apelo às instituições. Não acredito no todo poderoso, mas choro, desmontado, na festa de Natal.
- Ainda estou confuso.
- Não acredito no homem, no singular, acreditando num sentido de humanidade, ausente na vida rotineira. Acredito na potência, no laço de amizade que poderia haver. O ateu de fato, descrente dos homens, no plural, única projeção de Deus com a qual podemos contatar, feita à sua imagem e semelhança, é, na verdade, um misantropo. Não recusa a existência da espécie, evidentemente, mas constata que o homem que existe não lhe é suficiente. O homem de que precisa, se houvesse, encarnaria Deus. Essa é a lei da mitologia clássica. Deus e homens separados por um sistema de gradação.
- Você poderia ser mais claro?
- Não sou ateu, porque, apesar de tudo, acredito nos homens, como projeto futuro e coletividade, como potência de sinceridade e perdão. Condenado, Sísifo nunca resistiu à penitência. Desiludido a cada tentativa, descia consciente para perpetuar a própria condenação. Traído pela mulher, jamais deixou de acreditar num sentido de união.
- Mas você acredita em Deus?
- Não sei responder. Passei a vida inteira confiando no meu pai, e isso é indício forte de que preciso acreditar em alguém.
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