Wednesday, October 29, 2008

Claro, eu disse. Toda decisão é legítima. Se a gente vai disputar os terrenos da família, ou se o Robson não vai se incomodar em morrer com pouco dinheiro e sozinho. A Márcia - lembra dela? -, a Márcia verteu meio litro de gasolina na semana passada. Juro pra você: não achei ruim. Digo: não vejo nada de mal. Você pode escolher a vida felpada; difícil outra escolha, com filho no colo. O Renato foi pai aos dezesseis. Curiosamente, mudou menos a vida dele do que a do Moacir, aos 29. Abandonou bar, boteco e camiseta. Veio todo um pacote. Um amigo meu de Lima pegou dinheiro emprestado e voou para Buenos Aires na segunda à noite. Em casa, de férias, ficou com medo do copo de whiskey que não saiu da mesa. Depois, numa pizzaria da Av. Corrientes, foi bem pior. A solidão dói diferente no estrangeiro. Experimentou? Hoje, troquei duas ou três palavras com o Róger no msn. É vida, repeti. É vida. A Raquel, a ruiva meio rejeitada do colegial, sabe quem é? Pois é: engenheira formada, me disse, nesse fim de semana, numa peça de atores adolescentes. É decisão, rapaz. Rápido ou devagar, estendendo ou encurtando. Cada um com a vida que tem. E as vontades que assustam num cruzamento de duas mãos, numa noite sem farol. Normalmente, tomo cerveja num bar que tem vista para a Augusta. Raramente venho aqui. De lá, sinto muito mais medo das decisões que tenho tomado. Vai saber o motivo.

Chefe, você fecha lá pra mim? Põe a última e encerra, por favor.

Monday, October 27, 2008

Quando Celso desce do ônibus, e escuta o cobrador chamar uma passageira de bruxa, acha graça. Mas quando lê no jornal que o PIB da China vai mal, sente um frio na barriga. Jaqueline trabalha de manicure num salão da Alameda Lorena. Não tem medo de lobisomem, mas anda bastante preocupada: tá difícil parcelar o fogão que planejou para o Natal. Váguiner aposentou no ano passado. Ontem, gritou *diabos* - e se desculpou depressa - diante da tevê. William Bonner pareceu nervoso ao falar duma história de crédito global.

myspace.com/medomoderno

José Paulo está ali fora, sentado na mureta de uma padaria, a duas quadras da Paulista. A noite está quente. O cigarro acabando, só seis, conta com os olhos. José Paulo fez 49 anos na semana passada. Aniversário tem sempre a mesma pergunta. E? Nem tão calvo, nem tanto cabelo. Soube que um filho seu com Lia teria pele clara e cabelos castanhos escuros. José Paulo tem cabelos grisalhos agora. E não tem filhos. Luiz Alberto, seria o primogênito, o nome preferido, se Luara não, em 81. Todo ano tem aniversário. E? José Paulo perdeu emprego e certezas. Pernas cruzadas, quieto, alguns carros na rua, um casal saindo com pães quentinhos. Domingo é meio aniversário. E amanhã? Segunda-feira nunca foi nova na minha semana. Muda um pouco o sol que acende o vagão a caminho da Parada Inglesa. Horário de verão. Cigarros a menos. José Paulo trabalhou de figurante num dos primeiros filmes do Giorgetti. E foi caixa num retaurante italiano ainda adolescente. Na semana passada, fez 49 anos, ainda sem saber o que fazer da vida.

Friday, October 24, 2008

Henrique, meia hora navegando entre blogs e sites de ficção. Que são todos, disse alto, sozinho no quarto. O desenho em um deles, o texto sobre um cachorro, o tchau, com a morte, decifrada como o fim da comunhão. E uma espécie de nota, jogada no penúltimo post:

"Esse blog é causa e efeito de um livro de contos. As tartarugas do tempo de lá. Nem tudo eu escrevi. Em alguns momentos, um desenho de Esteban Ocampo Giraldo falou por mim."

Do maleiro do armário do quarto, via todo mundo menor - e me sentia mais forte. Protegido. Cresci entre cachorros: ninguém repete amizade assim.

E para entender?

Tuesday, October 21, 2008

Sento com frio nos pés, descalços. Alguma coisa acontecendo lá fora. Um senhor de guarda-chuva, fugindo da garoa fina. À noite sempre molha mais. Vocês bem sabem. Fico úmido depois da meia-noite. Se sento para escrever, qualquer coisa que faça, acordado. Estabeleci correlações, na vida, que só se relacionam em mim. Universais. Meia-noite, inverno, Chauveau e saudade. Mariscos, segredos. E você. Uma placa riscada, Carrer Pamplona; pé gelado é distância. Das coisas que quis; das pessoas que quis e fazem falta. Com as meias que visto na hora de dormir, chego mais perto da língua morna, a vaca que me lambeu, volta aqui, moleque, já disse que não pode entrar aí. Não entro mais. Não posso. É mais fácil sentar com os pés gelados. Que é quando o inverno dá saudade. E o pasto proibido perde a cerca outra vez.

Saturday, October 18, 2008

Existe um bar néon numa rua sem saída, perto de Santa Cecília. Quando Joílson senta para tomar serveja, pensa que serveja se escreve com "s". No primeiro copo, olha as mesas ao redor, estuda a mulher do caixa e pontua o último assunto do dia. Tristesa, anota no guardanapo. Gira o paliteiro no centro da mesa. Sente o braço arrepiado, inteirinho. A gente precisa de serveja para sentir muita coisa. Segunda, pede ao garçom. Pode trazer a segunda. Gelada. Não faz mais frio em São Paulo. Estica os dedos, um poco acima da barriga. Esfrega as unhas, polindo as pontas machucadas. Estou ficando lonje, sussurra, baixinho. Lonje e virado. Pinça um cigarro do maço guardado no bolso da camisa, semi-aberta. Respira devagar antes da primeira tragada. A fumaça sai enquanto fecha os olhos, do cansaço e da preguiça. Repara na cadeira de lata descascada, logo à frente. Vermelia, confirma. Saudade dos churrascos na casa da tia, Clara na cadeira de praia, nem sinal do gole derradeiro, feito de pinga e limão. Ameaça um sorriso. E recolhe uma cosquinha molhada, nos cilhos. Sente a espuma cremosa juntando os lábios, mata o calor. De olho na Igreja do lado de fora, saudoso, discute com Deus, em silêncio, anda cansado, carente de socego. E, em coisa de meio minuto, arrepende-se, envergonhado. Cabeça quente, senhor. Sossego é com dois eces.

Thursday, October 16, 2008

http://www.diegofermin.com/

Não arrisco dizer se triste ou engraçado. Vejam só. Descobri, recentemente, numa conversa de esquina, aqui na República do Líbano, cresci fragmentado, vida fracionada. Começou, regra, com uma lembrança. Que vira outra lembrança, até, lembrança, ser zil trilhões de lembranças, que se repetem e nunca acabam. No dia da mesada, que era semanada, preferi, todas as vezes em que pude, escolher o bolinho de 1 a nota de 10. Ou no primeiro dia de aula, nervoso, colégio novo, o par de meia embaralhado. Calado, falei com pouca gente, muito pouca, na raia dois, sempre dois, da escolinha de natação. Esquisita a identificação que tive com os números primos. 17 por 11 anos seguidos na lista da classe. Dividido com um, ou com ninguém. Sempre misturei lego e playmobil - não doía nada. E no álbum de Animais do Mundo, esfreguei a tatuagem do pacote de salgadinho. Ficou bonito, garanto. Não tive um grupo de amigos, tendo amigos em grupos nos quais também não tinham tantos amigos assim. E, na casa toda, meu quarto precisou ser de outra cor. Com a claridade, vejos uns bichinhos flutuando no olho - são bem menores contra o fundo azul. Verdadeiro céu numa casa cheia de fantasmas e paredes brancas. Dobrava a folha perto da formiga grande. Desdobrava entre as formigas pequenas. Botão de seis ou sete times diferentes - sem ser o Botafogo, exclusivo do meu irmão. 4 camisas de times argentinos rivais. Mais bonito. Nas aulas de alemão, o mesmo lapso do inglês. E duas palavras seguidas em castelhano. Joder. A quietude é um laboratório arriscado: planeja cruzamentos sádicos; quando vê saída, improvável. "Silêncio é pátio de desmanche clandestino", escrevi no banheiro do motel em que trabalhei.

Saturday, October 11, 2008


Sem querer, me perdi em Paris.

Thursday, October 09, 2008


Um teste, disse Alessandra. Feche os olhos, abra a boca e... Docinho, docinho, um pedaço de rosa, peguei no canteiro da minha tia, pensando em você. Cor de laranja, imaginei, sem ver, apenas pelo gosto, pintando a língua. Mais um pouquinho, pediu. E eu, que, com nove anos, adorava a pasta de dente sabor tuti-fruti, sem nunca perder a vez no "pêra, uva, maçã, salada-mista", promessa de beijo da Regina, sempre aceitei fácil aventuras vendidas a preço de paixão nova, seis minutos e meio.

Monday, October 06, 2008

Bruno encostou a garrafa nos lábios, soprando, alheio às conversas da mesa, preguiça no jantar de aniversário, e ouviu, que fosse impressão, o som grave, aveludado, a mesma sirene da balsa para Ilhabela atravessando a cabeça, pinçando o estômago, os olhos ensaboados, não, não sei, o que vocês quiserem. Mesmo a Marguerita, experimentada agora, albahaca, se dice, com trilha de verão, o curioso adiamento da chegada, com as 5 horas de espera na fila, a brisa, o cheiro do mar à noite, fico aqui as férias inteiras, por cima da promessa de reveillon com luau e faróis acesos, e "My song", Garbarek e Jarrett no toca-fitas da Quantum vizinha na viagem, licença, que música é essa, o tipo, meia idade, barba comprida, grisalha, esse som aqui, as duas garotinhas da foto da capa e as pedras no chão, mais ou menos assim, o vendedor, tentando adivinhar, jazz, você falou, a Hi-Fi, no Eldorado, não é para presente, não. Os amigos reunidos, ninguém mais canta parabéns, com abraço folgado, selinho da Paula, a piada do garçom na mesa ao lado, o reflexo das lâmpadas frias no vidro verde do guaraná, com menos colarinho, por favor, a sexta e a segunda-feira, ontem e depois de amanhã, com a faculdade e o trabalho, a equação, Mônica, Fernando e Fred, trio parada dura, ménage vai ter, mais velhos, saudade um do outro, se o MBA em Nova York, festas tresloucadas em Paris, ou só os três meses de curso de espanhol em Medellín, a consciência carregada, essas coisas que acontecem, sinceras e assustadoras, no apartamento do Pedro na Rocha Azevedo, em 2003, clima de vale-tudo, e o que o medo cobra depois? Bruno, as aulas de flauta da quinta e da sexta série, o segredo do formato da boca, a Nona Sinfonia, os cem ensaios para a Noite Musical, arrematados no domingo da véspera, São Paulo x Portuguesa, o truque e a medida da bochecha na corneta vermelha, com gosto de plástico e sobra de saliva na hora do gol. Reaproveitados numa festinha improvisada, o trompete usado, comprado de um amigo, só quero fazer barulho, saindo, de cara, três ou quatro notas, repete, Bruno, tá ouvindo, é quase, tá vendo, a melodia, vai de novo, igual, cacete, a mesma melodia, caramba, sem querer, você tirou "parabéns pra você".

Sunday, October 05, 2008

Agora, digo, cômodo com a situação. Sabe do que eu mais gosto de ter tido filho homem? Perceber, com sutileza, sem precisar avançar posição, esse dia, ou dias, em que a gente troca capirinha por cerveja, peito por buceta, prosa por verso, e a turma por dois ou três irmãos.

Friday, October 03, 2008

Teve um dia primeiro - não foi ontem, não. No caminho de volta, cansado, algumas pessoas me deixam cansado, avaliei que futuro brilhante perderia trocando o que eu tenho por noites sem destino no centro de Berlim. No centro, ou em Kreuzberg, pensei. Onde o aluguel é mais barato? Nenhuma, o porteiro, enquanto eu subia a escada na entrada do prédio, doido pelo disco que comprei. Nenhum futuro?, estranhei. Não, não, seu Henrique; nenhuma carta pro senhor.

Wednesday, October 01, 2008


Esse barulhinho que escuto quando acordo me faz lembrar uma manhã de sol, tempestade de ontem não diria, em Camburi. É um chiado, nunca soube se grilo ou cigarra. E, no meu quarto, em São Paulo, acho, há de ser o tilintar do vidro da janela, em frequência rara (tchau, trema!), cada vez que sobe um caminhão na rua lá fora. Essa mania que tenho, ou que acontece comigo, de rever a cor do Corcel que meus pais tiveram, cada vez que ouço o mesmo tom da buzina, é a verdadeira culpada, razão inteira, por toda a melancolia que me faz acordar longe, acordando em casa, o cheiro da grama molhada, com essa mesma satisfação de quem teve um desejo realizado durante a noite, Deus, ajuda a sair sol amanhã. A luz cruzando a janela, ainda reconhecendo a novidade do quarto, escondida no escuro da noite anterior, a gente chegando molhado, de tirar as coisas do carro debaixo da chuva. Quanta água! E, no colchão sobre o chão, vovó, dormindo ainda, saudade. De quando a gente não sabia que depois, tanto desespero, sem motivos, a vida inteira anulada, inclusive o começo de sol num feriado, vai dar mar. O sol chegando no rosto, os detalhes de vovó ficando velha, perdida, sentada na poltrona da casa da irmã, olhando agora, vejo mais velha ainda, alheia, com menos afeto, menos poesia, escancarada e desinibida, sem tempo para mudar o caminho e as escolhas pela última vez. E conforme o sol invade o quarto, tanta luz, tanta luz, os móveis da família mostram os dentes e as banguelas, até uma almofada emborrachada de quando a casa era o roteiro preferido das férias de mamãe, dando volta pelo quintal, pegando manga com a mão, a areia dos pés dizendo bye-bye, chiquilla, efeito da ducha forte e gelada que filtrava a volta para dentro da sala. Que ninguém entra sem tirar o grosso!
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