Wednesday, January 23, 2008

O beijo e todo o desejo deixados de lado, à beira da cama.
- O que foi?
Érika sorriu um pouco. Pela cor dos olhos, pelo brilho aguado, as mãos inquietas por cima do colchão, percebeu: alguma coisa errada. O esticado da boca, o contorno novo ao redor dos lábios: quase chorando.
- Mas... Tava tão bom. A gente, os dois... foi alguma coisa que eu disse?
Na festa, na pista de baixo, as luzes coloridas, a música excessivamente alta, o cruzamento no meio da bagunça, finalmente o tesão. Luis e Érika. Érika e Luis. Um pouco de água no seu copo, um beijo na nuca, a mão por trás, a mordida na orelha, a mão pela frente, o braço em volta, o sentido desordenado, que bom. E não teve tempo para dizer o nome, sem intervalo para adivinhar a batida, tudo tão rápido, urgente, tudo tão álcool, não precisa dizer agora, teve botão desabotoado, bebida derramada, cabelo na língua, dente roçado, ah, era tudo o que eu queria. Na saída, eu pago a comanda, você beija bem, táxi, táxi, tem como, ah, vai, eu vou, se o beijo é bom, o F1, aqui mesmo na Consolação. O decote derrubado, o mamilo tragado, vai com calma, ah, vai, a recepção, casal, não tem reserva. E o elevador, o andar errado, sobe mais, querendo pelada, não tem mais graça de roupa, pela escada, vai, vai, aqui, então; não, não, mais dois degraus, debruçado, tanta fome e tanta sede. A porta, a chave, deixa eu ir até o banheiro.
- Não sei. É que eu não consigo mais. Desculpa. Não consigo. Isso. Parece pouco, eu sei. Mas é muito pra mim. Juro que tem sido demais.
- Achei que tava bom. Não faço alguma coisa parecida tem tempo já. Juro. Maravilhoso. Bom mesmo. De verdade, até.
- Desculpa. Você parece legal. Mas não é por aí, não. Com você, quero dizer.
Luis abaixou a cabeça, desejo contido, pra lá de confuso.
- Não é. Trabalho o dia todo e não sou feliz. Namorei seis anos e não fui feliz. Compro roupa, disco e livro. E não sou feliz. Blefo o tempo todo. Troco de celular. Faço happy hour, absolutamente convencida de que não ando feliz. Me arrumo. Faço regime. Então, como três, sete barras de chocolate. Light. E não sou feliz. Pinto o cabelo, levo três horas para fazer a unha, fico inteira depilada, uso alguns cremes e o mesmo perfume. Aí, entro num táxi, combino com um casal de amigos, às vezes um doce, às vezes só o peguinha mesmo. E não sou feliz. Queria amar a vida que tenho, mas não consigo. Porque não me faz feliz. E sei que tinha como fazer.
- Comigo também...
- Não, não, juro. Dessa vez, não é. Não é mesmo - pode ter certeza.
- É, sim. Quero dizer, não é em relação a você. Digo: não, o meu problema não é para você, com você. É que isso que você tá falando é comigo. Entende? Isso tudo, que não era para ser tão grande, é enorme comigo também, sabe? Não, não sei, acho que tô sendo confuso. Não, não. É... Desculpa. Comigo. Também não ando feliz, caramba. É isso, é não andar feliz que é comigo. Também.
- Não muda as coisas. Se, por um incrível acaso, doesse em você como dói em mim - e com certeza não dói -, não diminuiria nada. Eu realmente queria amar a vida que tenho. E não consigo. Desiste: te conheço há 50 minutos, você não tem como tentar por mim.
- Não, não é nada disso. Você não entendeu. Tô aqui por um problema meu.
- ?
- Quer ouvir?
- ...
- Quando estava saindo para a festa, liguei para avisar. A gente faz isso de vez em quando. Ou fazia, vai saber. Só precisa avisar. Avisar a Andréia, digo. E ela me avisar. É como funciona. Mas, quando liguei para dizer, "avisar", o celular tocou, do lado, na estante onde deixo uma coleção de míni-craque. Ela viajou e esqueceu o telefone em casa.
- E você chegou a "avisar"... suponho que... "mulher, namorada"?
- Não precisou.
- Tá com culpa, é isso.
- Não. Nada parecido. É que, sem querer, lembrei que ela tinha viajado, entende? Esqueci que a Andréia viajou, você consegue perceber? Esqueci que a mulher que eu amo viajou... Acredita? A gente se acostumou a depender um do outro, saca? A saudade que eu sinto foi acostumada. E hoje me dei conta de que esse tipo de saudade a gente esquece.
- Dependi demais também. E, no final, amava de menos.
- Na verdade, acho que meu problema é enfrentar um cinema sozinho.
- O tempo todo gripada...
- Ân?
- Eu, o tempo todo resfriada.
- Temporada de gripe, né?
- Duas vezes. Tenho tudo do papel da ruivinha.
- Andrés Caicedo, espécie de Kerouac colombiano - não sei se você conhece -, se matou aos 25 anos. Viver mais era insensatez.
- 28.
- 27.
- Um pouco atrasados.
- E mais covardes.
- Meu medo é terminar no negativo. Gastar tudo que foi bom num mar salgado. Dar corda para o tédio e me acostumar.
Luis vestiu a camisa.
- Você ficou com tesão?
- Em você?
- É. Ficou?
- Rápido. Depois lembrei que ando sem tesão em mim.
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