Saturday, November 24, 2007

O rapazinho chegou mais perto do confessionário. Se vai, se volta. Muito frio na barriga, medo do pecado imperdoável, o mal irreversível. Toda a semana, todo um desespero: "como vou fazer? se faço?". Texto experimentado, voz marcada. Mesmo o lado da franja, preocupadamente repartida. Não queria ter de, falar em, justificar por, que tudo dava calafrio. Ser quase o Diabo, fraco e seduzido, refém da falta de patrulha de um momento: o fraquejo e uma ocorrência.
- E, então, meu rapaz? O senhor saberá perdoar um filho arrependido.
- É que... O senhor sabe. Dos males, o grande, o menor. Seu padre, o senhor entende.
- Diga, criança. É Justo.
- Padre, quando a gente se deixa invadir, digo, quando vem e é bom, quando até faz bem, porque deixa mais feliz, quando nos faz melhores no mundo, para o mundo - ainda assim, é?
- É o quê, meu filho? Pecado?
- É, padre. Acho que o senhor me entende...
- Meu filho, qual é o seu pecado?
- É que não sei se é, apesar de imaginar que seja, tanta condenação.
- Meu garoto, só Ele condena. Eu escuto e receito a cura. Se ainda houver alguma.
- Seu padre, é que, o senhor me perdoe, mas, em casa, uma vez, tocou uma sensação forte em mim, uma vontade de mais, um arrepio, nem pensei, tão bom que foi. Suei, perdi o teto, o chão. E foi, aconteceu, sem controle, com pouco juízo.
- Meu filho, seja mais claro. Por que dobrar a punição com detalhes de uma fantasia suja?
- Não, senhor, não é isso, é que preciso saber se foi, se tem pecado, maldade e danação, quando existe amor... amor entre irmãos.
- Garoto, preste atenção, o que você insinua, ameaça dizer, é sério demais. Vermelho e infernal. Se entendo bem. Entre filhos da mesma mãe, meu Deus?
- Isso, padre. O amor, a paixão, essa vontade proibida não tem perdão?
- Muitos "Pai Nosso" e muitas "Ave Maria", perdição. Que horror. Ojeriza, é o capeta. Compaixão. Com irmã? Ah, piedade. É do Diabo.
- Mas não é isso, seu padre...
- Garoto, não tem o direito, a avaliação só chega do Céu. Diga o que fez e terá o castigo que lhe cabe. E, talvez, com muita disciplina, alguma salvação.
- Seu padre, por favor, seu padre. Mas eu vi na foto, eu vi. O senhor tem que entender. Na enciclopédia, quando fazia o trabalho sobre o muro de Berlim. Eu li a frase, acreditei.
- Anda, menino, o pecado, rapaz. O senhor entenderá. Eu sei.
- "O amor", padre, "o amor cura todos os medos". Foi o que eu li na legenda da foto do muro de Berlim.
- Mas que raio foi isso que você fez com sua irmã, alma condenada? Horror, meu Deus. Perdoai, senhor.
- ...
- Anda, diga logo, diabos. Se ainda houver absolvição.
- Não tenho irmãs, senhor.
- E então?
- Então o quê, senhor?
- Deixe de chorar, impertinente. Confesse agora o crime que fez.
- Seu padre, perdão, seu padre, mas "o amor perdoa o medo", e foi com o meu irmão.

Friday, November 23, 2007

No café da manhã, o destino até a geladeira, em busca do pote de iogurte da marca do supermercado. De volta à sala, antes de arrumar a mesa, passo até o armário; a refeição, para ser completa, corn flakes, também da marca do supermercado. Em seguida, um pacote com torradas, mais ou menos 9. A variação de um saquinho para o outro, dentro do saco maior, comprado a preço baixo, o preço da marca do supermercado. Tudo na mesa, ajeitado; olhava pela janela: tem jeito de a vida não ser sempre igual. Embora o café da manhã, o almoço e o jantar tivessem a medida da mesma marca de supermercado. No café da manhã, tinha tempo de pensar nos cafés do almoço, da tarde e do dia inteiro. Durante o dia inteiro, buscava brecha para pensar no dia seguinte. E, no fim da vida, o medo, ter tempo de lembrar tudo de novo? No café da manhã (ainda), a sensação de adivinhar, letra a letra, um trecho de livro, um pensamento, por acontecer, por alguns instantes, numa página a caminho. Mantinha, à custa do receio a gesto esquisito, o caderno, "telepatia abre em mim um catálogo de ficção - e alguém acreditar?". O texto, a pausa, as palavras com calma e cuidado, reunidas na ordem da vidência: a encarnação de um livro desconhecido. Na hora do café da manhã. Cada história por vez, os parágrafos psicografados. Simples, bonita, a musa inspiração deitava quase de graça, cobrava preço baixo, com etiqueta da marca do supermercado. O leite, os flocos estalando nos dentes, leitura demais. Quando desmontou. Porque haveria o dia seguinte, pensado na brecha do dia anterior. E deu medo. O joelho apertou, a boca sem água, o estômago desregulado, a atenção bagunçada, o sonho desmanchando à medida que abandonava esse terreno promissor que é a fantasia. Bateu o olho, lendo na cama: a mesma passagem, palavra a palavra, aconteceu. E alguém acreditar? Escrito de mim um livro que não é meu?
"Ano após ano, o tempo mastiga casamentos, falsas amizades, filhos incompreensivos. Sobram-nos as velhas referências, a sólida terra firme do companheirismo antigo, aqueles que nos viram pelados, que um dia descontruíram nossa história, que sabem da nossa dor, da nossa solidão, do nosso desespero." (Eles eram muitos cavalos, Ruffato).

Thursday, November 22, 2007

De:
Enviada em: domingo, 16 de dezembro de 2007 15:02
Para: Renato Coto
Assunto: Não pensou...

Que deixou de ser seu amigo porque desconfiou?

Tuesday, November 20, 2007

- Você já comeu a Karina, Renato.
- Você acha?
- Certeza.
- É? Certeza? Do quê?
- Não sei. O jeito dela. Sempre esse jeito. De quem te adora ou te odeia. Nos dois casos, demais. A presença mútua de vocês é sempre um conflito. Nos dois, acho. Estou certa?
- Não. Bem, mais ou menos. A parte do "comeu".
- Vai, Renato. Não sou boba.
- Não mesmo, Marina.
- E o Fabrício nem tem idéia. Joga a vida pela fidelidade dela. Tanta certeza.
- Essa mesma certeza que você tem. Digo: a certeza de que eu comi a Karina.
- Anda, Renato.
- É sério. Foi quase, mas brequei no fim do caminho. Ele era meu amigo, melhor amigo.
- Se soubesse que deixaria de ser...
- É, talvez. Foi numa festa. Entrei a convite deles. Lançamento de um disco. Falaram "vem". Fui. Seriam duas semanas em São Paulo. Estava estranho. Fui. Mal me viu, a Karina elogiou. "Bonito". E a gente engatou uma conversa interessada, animada; o Fabrício ficou atrapalhado, percebi. Mas ela não largava. Inesperado. E a gente começou a dar risada, risadinha aqui, ali. Aí, comentei que ela ficaria linda num corte de cabelo - "o Fabrício não deixa". E foi indo. Fomos, na verdade. Ela falava mais perto. Eu, bebendo água. Estava tomando remédio, com uma dor no saco. E ela falando, falando. E se aproximando. Aí, decidi sair. Mudei de sala, de andar. E, no mezanino, encontrei o Fabrício, na escada, conversando com um boçal. Me chamou para sentar. Ficamos batendo papo numa mesinha. Tudo bem estranho. Não éramos de "bater papo". Quando a gente sentava num bar, até doía. Porque era sinceridade.
Imensa. As mágoas da vida, as heranças do tempo. O livro mais lido. E a fantasia inacabada. Nesse dia, não. A gente bateu papo, traindo a gente mesmo.
- E...? E a Karina?
- Então, de repente, apareceu de volta. "Licença", olhando para mim. Não entendi. Estava provocando mesmo. Não sei se tinham brigado, brigando ainda. Fato é que, três minutos depois, sentada, começou a passar o pé na minha perna. Apostei que era imaginação minha, desejo, vaidade, sei lá. A mesa pequena. Mas não. Foi aumentando, roçando mais e mais. E o esforço tremendo de seguir atento ao que o Fabrício dizia. Não se deu conta. E eu, excitado já. Fiquei um pouco incomodado com a baixaria. "Vou desaguar", brinquei. Quase caí, quando, em pé, a Karina emendou "vou pegar carona". O banheiro era misto e essas coisas. Entrei. Saindo, ela me devolveu para a cabine. "Sei que você tem vontade. E respeito seu respeito pelo Fá. Mas não vamos deixar para depois. Não consigo."
- Aí foi, claro.
- Não, não. Não, quer dizer, mais ou menos. Ela entrou, beijei com gosto, estava cheio de tesão. Desci o decote, vestido verde, lindo. Chupei a teta dela, rosinha, rosinha; alisei com o polegar, o olho meio fechado, completamente entregue. Ouvi umas gemidinhas tímidas, senti o corpo todo tremendo nas mãos. Levantou o vestido e tudo. Repetiu: "tá bom demais, Renato". "Não pára". E baixei um pouco da calcinha preta, vi a bucetinha dela, virei pedra. Um filetinho bem definido, a pele branquinha, um sonho. Naquela hora, claro. Beijei mais - abriu o cinto. Pediu de novo para não parar. "Vai, vai", ofegante. E eu ainda estava no pescoço, babando, cuidando para não gritar alto. Ela foi tocando, por cima da calça, da cueca. Tudo muito bom, cheio de risco de um vazamento precoce.
- Aí você meteu, Renato. Já mostrou que a culpa não foi sua.
- Não, Marina, não. Sério. O Fabrício é meu amigo, era, vai saber. Não meti, não. O saco doeu, me lembrei do remédio, o exame da tarde. Disse: "não posso". "O Fabrício é meu irmão". Só. Mas esquece isso, eles estão voltando.

Wednesday, November 07, 2007

Die berliner Mauer. O guia atualizado nas mãos. Deixara o hotel bastante incomodado. Ada dizendo "não acredito", "bem aqui", "por que, meu Deus?". Danilo precisava de "ar fresco". Nervoso com a discussão, "não tem que ser para sempre". Tão óbvio e tão proibido. Assim. Tem que ser mentira, sendo tão cruel, pensou. Se não tivesse dito, se tivesse aceitado ser quieto outra vez. E admitisse a vontade dela. E fizesse a rota dela sem doer demais. Mas estava lá, a fantasia própria, sempre sufocada nos cabelos compridos e na palma da mão, ansiosa pelo volume do corpo arredio e feminino. Mas eu vou ter uma chácara. Vou viajar de navio. Criar tartarugas. E falar 7 línguas. E voar num zepelim. Monte de sonhos, com o tempo, em vão. Agora, no alto da Alemanha, até o roteiro da cidade querendo ser o de alguém. "Não", desabou no quarto. ''Não fiz a parede da sala com azulejos de cozinha árabe, não abandonei Química no segundo colegial, não montei a fábrica de vinil, não postei o envelope em Praga nem terminei o meu primeiro livro. Não fui do CoBrA, não tive amigos "fluxus", não me formei arquiteto. Prometi que teria 5 cachorros, nenhum carro e que correria a maratona. Não é possível: o que sobrou do meu sonho, se é que sobrou algum, vai ter dono, dona, agora, em Berlim?" Ada, na porta do banheiro, e ofendida; toalha feito turbante na cabeça, machucada, não aturou. "O que você quiser, egoísta. Tá ouvindo? Vá lá: faça da maneira que te satisfizer." Correr pelado em Estocolmo, um bairro pequeno de Barcelona, tango argentino num bar vazio de São Paulo, a bicicleta de 90 marchas, gozar de meia furada, contar estrelas no céu de Ilhabela, roubar um cd importado, dormir no telhado, aprender guache, desmanchar aquarela, rever Sofia e a catedral, nadar na caixa d'água com a Mariana, terminar a faculdade, não ter medo, não ter medo, viajar até Pequim, mudar de planos, tocar piano, ser veterinário, veterinário, beijar a Marcela, comer a Marcela, trocar a camiseta, cumprimentar Del Shannon e escorregar de barriga lá do alto da rampa fofa e gramada. Foi a listinha de sonhos que lembrou. Diante do muro, o sonhado muro de Berlim. Bem longe, agora; Ada sozinha, no Mitte, na primeira semana das férias de verão.

Tuesday, November 06, 2007

Muro de Berlim. O nome do capítulo da Barsa. Mesmo nome da lição. A professora, Cecília, "para a próxima semana". O muro de Berlim, ela quis dizer. "É para a próxima semana". Quando dividiram o mundo, o ocidental, o oriental, ninguém imaginou: lição de casa. "Vamos até a Eliana", disse o pai, na cozinha. Tem a coleção completa de enciclopédias. Incompletas. Então, montaram no carro, após um almoço de domingo. Saíram contando os Voyages da rua. Foram 37. E estacionaram do lado de fora, em frente ao portão cinza e comprido. O jardim da frente, as palmeiras altas e uma planta, "bico de papagaio". Trocaram "ois", a mãe ficou na sala, conversando. Mathias seguiu até o ateliê dos fundos. Antes, cruzou uma tartaruga. "Aposto uma corrida", ensaiou, desajeitado, o pai. E pensaram no muro de Berlim. Foram à primeira, de "A" a... Não lembro bem. O pai sentou na mesa, o filho abriu na página 276. O pai perguntou: "achou?". "Ainda não". O pai acompanhou cada dúvida, e a lição mal tinha começado. O moleque tossiu, coçou os olhos, alergia, tanta poeira. Encontrou e começou a ler, devagarinho. O pai repetiu: "ajuda?". O filho: "é só copiar?". E acumulou o primeiro, o segundo. Foram mais de dez parágrafos até que, cansado, "desisto". "Está entendendo?", e o garoto fez que não, claro. O pai olhou mais sério: "se você me explicar um pouco do que escreveu, copio o resto". "O muro de Berlim", foi dizendo Mathias, "dividiu o mesmo país, a mesma cidade, o mesmo bairro, o mesmo povo em dois". E o pai sorriu: "separou até famílias. Mitte, Prenslauer Berg, Charlottenburg...". O filho bocejou, estava com sono. Era hora de terminar a lição. Agradeceu o pai com um abraço. Apertou forte. Sem querer, veio de volta, com os olhos fechados, a foto do concreto velho em pedaços. E celebrou a queda provisória de todos os muros que te separam de mim.

Sunday, November 04, 2007

O próximo disco do Si no puedo bailar, no es mi revolución será um tributo ao romance Un mundo para Julius. A belíssima dupla chilena Souvlaki, responsável pela trilha do vídeo abaixo, abrirá o projeto com outra faixa. Muy pronto! Otra belleza!

(Pequeño corazón multilingüe)

Saturday, November 03, 2007


Aos amigos grandes.
A nuestro modo, lo estamos haciendo.
Jorn, two minutes, please.

Thursday, November 01, 2007

O som dessa criança chorando no quarto ao lado, quase a mesma melodia de quando eu ainda comia a Camila. É alto e agudo. Tem dor e prazer. E vontade de vida. A criança é meu filho. E a respiração, aflita, me atropela. Não tenho meu silêncio. Nem minhas próprias aflições. Meus medos duplicaram: medo pelos outros. A criança ao lado. Hoje, meu medo: o choro, do meu lado, projeto para sempre. E o garoto vai crescer. E vai abandonar amigos. Abandonado também. Fico pensando: desejará arte? A primeira ficção? Coloco Glass para ele dormir? Ou Polaroyd*? Ou um hino latino-americano? Alguma chance dos acertos serem meus? Na noite de hoje, vou sonhar com ele. Barba por fazer, os braços levantados, uma pista de dança em Praga, um mundo reinterpretado, a coletânea das bandas favoritas do pai rejuvenescido. Enfrentará a dor do velho num pôquer perdido. E, tentado entre boçais, correrá o risco de falar demais de dinheiro, de reclamar de um festival de música cretina, de ficar 3 dias sem tomar banho, de ralar o joelho no skate, de perder um cachorro, de cozinhar um pedaço de peixe podre, de "estudar" publicidade, ou "administração de empresas". Aprenderá a elogiar estúpidos e a almoçar com ignorantes, tudo em nome do bom relacionamento e da sobrevivência. E lerá páginas de nada, em sites de nada e blogs atualizados. Com nada. Num táxi para a Aclimação, ouvirá falar de uma vida alternativa em algum lugar do Guarujá. Um homem sem uma única calça jeans. Escultor de móveis artesanais. E verá os olhos do motorista cheios de lágrimas, um camarada, colega meu, crescemos juntos. E "a mulher não dá", vai ouvir dizer. "Não dá, porque chego do trabalho cansado. Quero sexo, rapaz, não quero amor. E a mulher lá em casa precisa de carinho." E, de repente, vai entender por que preferem Glass, escolhem Polaroyd* e dançam Tarancón. Porque, no sonho, o filho vai ouvir uma lituana falar inglês. Vai aterrissar em Roma e bater pernas no bairro mais pobre de Lima. E não terá vontade de ser cool, porque falta tempo na vida. Que é bonita. E urgente. Depois, no meu mais profundo REM, longe do corpo, porque existe distância possível entre a gente e o corpo que cresce nosso, estranho a tantas vontades, entenderá mais das saudades, pedirá algumas segundas vezes e renunciará ao paraíso. Pinçará amigos. E, alegre, relevará a ofensa de discretos inimigos. Foderá uma primeira vez, num banheiro em Itanhaém. Lamberá afoito o par de tetas de uma garota linda de olhos verdes. Pensando num disco velho do Relay. E amanhecerá triste, escravo do tesão. Mas virão as segundas tentativas e o exercício da excitação. Com um pote de balas. Uma luva no inverno de Berlim. Ou a inesquecível conversa com dois grandes amigos dos tempos de futsal.
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