O som dessa criança chorando no quarto ao lado, quase a mesma melodia de quando eu ainda comia a Camila. É alto e agudo. Tem dor e prazer. E vontade de vida. A criança é meu filho. E a respiração, aflita, me atropela. Não tenho meu silêncio. Nem minhas próprias aflições. Meus medos duplicaram: medo pelos outros. A criança ao lado. Hoje, meu medo: o choro, do meu lado, projeto para sempre. E o garoto vai crescer. E vai abandonar amigos. Abandonado também. Fico pensando: desejará arte? A primeira ficção? Coloco Glass para ele dormir? Ou Polaroyd*? Ou um hino latino-americano? Alguma chance dos acertos serem meus? Na noite de hoje, vou sonhar com ele. Barba por fazer, os braços levantados, uma pista de dança em Praga, um mundo reinterpretado, a coletânea das bandas favoritas do pai rejuvenescido. Enfrentará a dor do velho num pôquer perdido. E, tentado entre boçais, correrá o risco de falar demais de dinheiro, de reclamar de um festival de música cretina, de ficar 3 dias sem tomar banho, de ralar o joelho no skate, de perder um cachorro, de cozinhar um pedaço de peixe podre, de "estudar" publicidade, ou "administração de empresas". Aprenderá a elogiar estúpidos e a almoçar com ignorantes, tudo em nome do bom relacionamento e da sobrevivência. E lerá páginas de nada, em sites de nada e blogs atualizados. Com nada. Num táxi para a Aclimação, ouvirá falar de uma vida alternativa em algum lugar do Guarujá. Um homem sem uma única calça jeans. Escultor de móveis artesanais. E verá os olhos do motorista cheios de lágrimas, um camarada, colega meu, crescemos juntos. E "a mulher não dá", vai ouvir dizer. "Não dá, porque chego do trabalho cansado. Quero sexo, rapaz, não quero amor. E a mulher lá em casa precisa de carinho." E, de repente, vai entender por que preferem Glass, escolhem Polaroyd* e dançam Tarancón. Porque, no sonho, o filho vai ouvir uma lituana falar inglês. Vai aterrissar em Roma e bater pernas no bairro mais pobre de Lima. E não terá vontade de ser cool, porque falta tempo na vida. Que é bonita. E urgente. Depois, no meu mais profundo REM, longe do corpo, porque existe distância possível entre a gente e o corpo que cresce nosso, estranho a tantas vontades, entenderá mais das saudades, pedirá algumas segundas vezes e renunciará ao paraíso. Pinçará amigos. E, alegre, relevará a ofensa de discretos inimigos. Foderá uma primeira vez, num banheiro em Itanhaém. Lamberá afoito o par de tetas de uma garota linda de olhos verdes. Pensando num disco velho do Relay. E amanhecerá triste, escravo do tesão. Mas virão as segundas tentativas e o exercício da excitação. Com um pote de balas. Uma luva no inverno de Berlim. Ou a inesquecível conversa com dois grandes amigos dos tempos de futsal.
<< Home