Wednesday, September 27, 2006


Um campo de algodão. Um cheiro de parafina. Um choque de elegância. Um medo infinito. Uma vontade censurada. Um agora, um depois. Um sentido de amizade. Uma decepção. A redescoberta quando a ascendência diz 'estou aqui'. Uma voz aguda. Uma harmonia embaralhada. Um disco novo, em rotação. Uma cor inominável. Uma lembrança forte e agressiva. Um sujeito sem predicado. Um objeto indireto. Uma casa de quatro paredes. Um céu embriagado. Um tecido viscoso. A intenção derrubada, no escuro do olho fechado. Um telhado arrancado. Uma roupa violada. Um segredo divulgado. A melodia de Satie. O dedo de Lúcia. O engano do professor. A mentira pontuada. O recorde falhado. O erro gramatical, despreocupado. Um momento de secura. A fórmica na geladeira. O botox na testa. Um acidente de motocicleta. A hélice da hidroelétrica. O botão de jasmim. O tesouro da Novelolândia. A artimanha do pé direito. O crime do polegar esquerdo. Um dedo no nariz, um falo no desejo dela. Uma luz no quintal de pedra. Um copo branco de leite sujo. A fome. O capricho. A sensação de estar. A ausência de princípios. O advérbio antes. A adjunto de, pois. A masmorra do castelo de plástico. O pequeno vira-latas. O grande monumento para Kafka. O jantar a três. À cama, de quatro. A barriga redonda. O fósforo de palha. Um cretino estupefacto. Uma medida profilática. Um preservativo usado. Uma roda quebrada. Um quadrado azul. Um tubo de pasta de dentes. A colher fora do lugar. O sapato 43. O exército do Império do Nosso Tempo. A máquina de soletrar. A aventura esfarrapada. O louco indesculpável. A pele clara. A inquietação obscura. O lápis sem ponta. A raspa de limão. O caça-pombas. A sedução de 56. A boina do avô. A religião do templo detonado. A aproximação. Um candelabro de três braços. A vergonha anunciada. A vítima maltratada. O carrasco reeleito. A sombra degradê. A perseguição telepática. A invenção do nome de Deus. A demolição do lençol de casal. A repugnância, no dia da apresentação. A introdução. A boca do fogão. O desespero. O filósofo de sobrenome Sponville. A canalha. A extradição do passado que foi meu. O nome Samuel. A decisão antecipada. O absurdo do agora e de sempre. O nunca, essa palavra que invade. A misericórdia pelo pecado necessário. A imbecil, ao lado, ao telefone. A página em branco. O quadro negro do globo anômalo. A vantagem de ser rico. A desgraça de querer ser feliz. A exatidão do dois mais dois. O engano que vem mais tarde. As variações. A dúvida. A seleção. Um livro de alguém chamado Darwin, em 1859. A barbaridade de um monstro chamado Colombo, num século batizado de dezesseis. A desfaçatez do burguês de barba. Um lenço no pescoço para proteger do frio. Uma etiqueta '100% seda'. Um vai tomar no cú. Uma palavra grande, em intenção. Uma falta desapropriada. O latifúndio hereditário. A capitania de ninguém. A toalha enxugada. O lábio rasgado no beijo que mordeu a língua. O nó francês. A menina que quis pouco. A dupla insegura. O agarra para não soltar. O intolerável da convivência. O intervalo único. Uma manhã de inverno. Um adeus com volta. O apelo insano. A caneta esferográfica. O fado. A maioria das crianças. Um projeto marginal. O passatempo bordado. O retrato montado. A perda da convicção. O sentimento do mundo. A maldade da mulher aranha. O rei da selva. Uma aristocracia no Nordeste de um país latino-americano. A interrupção. A pergunta pelo lavabo. A dança de acasalamento. Um slide de guitarra. O vestido reto. O básico lilás. A idéia pura. A calhordice daqui de baixo. O tamanho da fila. O focinho marrom. Um passageiro da linha 23. O espectro de um postal. O teatro de marionetes. A bagunça do quarto de hotel. Uma recepcionista de nome Vera. Um terreno de terra cerâmica. A floresta úmida. As tartarugas do mar laranja. O concerto de música pop. A satisfação com um pedaço de chocolate. O frio. Um par de havaianas. A derrota insuperável. O dinheiro depositado. A lógica da contradição. Uma mitologia. As vidas minúsculas. O sorriso em caixa alta. A catedral russa. O vale sagrado. A serpente queimada. A fronteira. Uma oferta de maconha. Um carreira de salário pequeno. A borracha no papel. O ator alemão. Uma educação. A visita de longe. O museu de nação nenhuma. A fonte de verão. A moeda de dois centavos. A canseira da saudade. A genealogia das bengalas. O último não foi o primeiro. A mecha loira. O 'não mexe'. A bonita sem caráter. O ano novo. O repertório obsoleto. A bússula de Cabral, desorientado. Um centro comercial. Um sanduíche especial. Um obrigado cheio de sinceridade. Um intestino solto. Um senhor aposentado. Uma noção renovada. A língua com cinrcunflexo invertido. A suspeita de traição. O rosto enrugado. A parca excitante. O tentador do fim. A faísca do chão. Um assento ocupado. O acento fora de ocasião. O batalhão de soldados de carne e osso. Lembro você.

Tuesday, September 26, 2006


A noite não está exatamente fria, mas o vento bate gelado. Têm coisas que, quando escorregam da mão, arranham. Pode ser uma sacola de supermercado, ou um encontro da própria vida. O mundo, do modo como querem ordenar, pensa em disfarçar a falta irremediável, refém dum futuro assassino. Houve uma faixa de três minutos e meio; a sinfonia de 4 movimentos. Não me perguntei qual a dor que tem cura; sei bem das que não estancam. Hoje, no caminho da estação, pensei em cada cílio arrancado, no tanto dos dentes que aparecem com um sorriso. Lembrei o sotaque de quem vive longe há muito tempo. Um capítulo de Tristes Trópicos chama São Paulo, e a cidade não vem. Olhando no espelho, o cabelo cresceu, a barba cobriu o rosto, não era assim antes. No reflexo esbranquiçado da pupila, existe um reservatório de água que não seca. Tem pingado por esses dias. Dizendo: "chora, menino, chora". Um professor, num caso de febre alta, acalmou um estudante de ensino fundamental com o mesmo imperativo. Seu cabelo grisalho encaixava no inverno, em escala de cinzas. Voltando da rua Pamplona, falei ao poste de luz: "adeu, invern"; foi um dia escorregado, voltará quando eu puder lembrar. Parece que consigo sentir o medo de quando rezei pela primeira vez, aflito. O cachorro, vira-lata, atacou o transeunte: "vou denunciar teu pai, moleque"; corri para a santa de madeira: "protege meu pai, senhora; por Deus", querendo dizer por mim. Não podia, que todo pedido, para valer, e valer melhor, deve ser maior. Os medos continuaram, houve tempo em que a oração era bem mais, duas ou três vezes ao dia; confesso que resolveu muito desespero. Porque a gente é assim; acreditar transforma o mal em bem; o nunca em para sempre. Pois, então, a noite começa a esfriar, sem vento que sopra úmido. Quando perguntarem se significa, vou dizer estou aqui. As palavras que são minhas, o texto que me esconde, escancarando, é o rastro que me explicará ao monstro que serei. Minto com freqüência, nada muito sério nem tão grande. A menina que cortou o dedo, não foi com serra-elétrica. Quando passa um tempo, fica difícil recordar a parte que é mentira, e gosto mais. O amigo perguntou: "Por quê? Fiz alguma coisa errada?". O outro explicou: "algumas coisas escorregam da mão e, quando escapam, arranham". Não entendeu, não. Mas entenderá um dia. Estou certo de que sim.


A última frase que falei, não sei repetir. Olhando do trem, primeiro de perto, pouco depois, de tão longe, dei-me conta de que o tempo estava passando, passado já. Foi quando me lembrei do dia da chegada; as malas ralaram a palma da minha mão, vermelha; mas a oportunidade de reencontrar alguma coisa ausente aliviava toda dor que fosse. A franja estava diferente, o sorriso tinha alguma tinta desconhecida. Mas a raiz parecia ter crescido como haveria de ser em qualquer terra batida. Agora, com meses escorregados, com diversos escorregões no tempo do caminho, sinto como se, para sempre, houvesse o dobro, o triplo de sentido. Sinto que, na verdade, a falta duplicará. São dois momentos que não voltam mais. E muitos outros momentos que jamais poderão tornar. Aqui dentro, dentro de cá, há um loteamento especial para essa classe de lembrança que dói. No começo, era só um pesadelo de criança, quando, do alto do prédio em que morava, despencava para logo ser recolhido por uma locomotiva voadora. Depois, a súbita desaparição de Ico. Então, o lugar para as recordações foi ficando cada vez mais caro, só permanece aquilo de preço muito alto. Dessa vez, quando de novo haverá um tchau choroso, o pedágio será causa de empréstimos e prestações para toda a minha vida. O passo adiante assumirá o risco de valer a falta mais gostosa.

Thursday, September 21, 2006

"Durante ciclo de debates promovido pela Força Sindical nesta quarta-feira, Heloísa disse que Lula era o "comandante de uma estrutura criminosa que poderia roubar, matar, ou até eliminar para manter-se no poder"."

Wednesday, September 20, 2006

És canalha, presidente. O governo dos pobres; o lucro recorde dos bancos. És corrupto e canalha.

Me custa admitir que só eu ouço. Sozinho. Não, impossível ser assim. Soa alto e melódico. No silêncio, ou quando ponho a vitrola para girar. Sem disco. As paisagens que eu lembro têm música. O beijo que secou teve trilha. Ela disse sim, e a melodia foi a mesma. Num livro de lendas célticas, a fada ouviu um zunido. Na mesma escala, ou em harmonia diferente? Melos foi deus. Se eu fosse grego, não sangrava. Atormenta porque triplica quando lembro o que não volta mais. Aguça quando quero chorar. Sobe no desejo de dormir. De olhos fechados, então. Pavor. Há quem diga que o espírito doente tentou amarrá-la em linhas de pauta, pendente. Que o russo quis traduzir em óleo, com expressão. A cor, a nota, a matemática que costura uma na outra. Sabe-se de um poeta que, antes de deitar, pediu algodões no ouvido: "para estancar o sangramento". Morreram sem cura, parece ser, e não houve sossego.

A fêmea, sem seu macho, perde o humor; atormentada, enlouquece. O macho, sem a fêmea, toca uma punheta.

Saturday, September 16, 2006

Queda poco. Ya no puedo decir cuánto. Apenas lo siento, con lo cual no puede ser mucho. No te espantes si digo: queda mucho también. Lo que llevo, clinamen, sólo puede caber en mí, escapándoseme. Cuando vuelva a verte, y juntos veamos las fotos, serán recuerdos. Puede que haya algún dolor, pero nos vamos a callar.

Friday, September 08, 2006


Fecha a mão e faz o que podes. Larga-te no chão, gelado, a tempo de oportunidade. Entra, testa, sopra-te e abandona. Quieto. Um desejo conspícuo, que não se guarda, opera-se. Tem que, ou asfixia, na solidão. Calcule o lugar. Inventa, pode ser. Não te acerques com velas, que pingam cera e deixam rastro grudado no chão. Vá desnudo, se puderes. Sem pêlos, se os tiveres. Toca e será pecado grave, equívoco bestial. Vê. Lembra-te, porém, de piscar os olhos que, secos, lacrimejam. Sente o cheiro, o respiro. Persegue o calor, sem esfriar. No atalho, guia-te por ti, não confies em ninguém. No terceiro movimento, não olhes para trás. Tens de desmerecer, que estamos de passagem. Repita: "de passagem", em silêncio. Todo pensamento há de ser mudo, sem limite para ser. Goza, se precisares. Sem ejacular. Temerás, meu filho, posso ver. Não desistas, a renúncia não volta pelo mesmo caminho. Segue adiante, humilhadamente.

Thursday, September 07, 2006



É preciso provar o passo adiante, com a dor prevista e o sangue escorrido. Esperar o dia seguinte com a certeza de que também será lembrança. O nome dessa rua, a paúra do efeito que o tempo tem. Passei uma primeira vez pensando que passaria para sempre. Dependo da memória. Se quiser ser o que sempre fui, terei de lembrar. Não esquecer que sou. O labirinto onde me perdi sozinho e encontrei o caminho que valeria só para mim; até o labirinto precisa permanecer. Houve um rosto esquisito, um assobio ofensivo, uma luz contra outra sombra. Houve eu. Havendo ainda. No dia em que eu disser "saudade", será de mim. Na noite quando estiver longe, quero a mágica de poder chegar mais perto. Outra vez. Atormenta ouvir o tchau a tudo o que faz da gente o que a gente é. A praça trocou o chão, minha pegada desmanchou. Cada vez que piso no mesmo lugar, tem um vento que me confunde. O ciclo é mordaz. Têm vezes que duvido só por duvidar. E em certos dias, algumas coisas duvidam de mim. Eu apago, pequeno, gastado no inútil do combate. Lembram-se de mim? O sol está escondido atrás do quarto que terá sido meu, sendo ainda. A mão que me cumprimentou pela primeira vez deu a impressão de que será possível. Agradeço de coração. O sotaque talhado em cada ruga, a textura entre as dobras do dedo, a força calculada para um aperto generoso. Obrigado mesmo, vou me lembrar de você. Os dois pratos sobre a bandeja livre; a alegria de juntar a lentilha e o sabor importado de casa. O improvável dia da chegada, repetido com tanta humildade. Uma cidade com começo no "L". Um nome com fim no "a". A ansiedade de quem não sabe esperar, tendo esperado tanto. O abraço. O trem. Sei, não peço para virem comigo, porque entendo nossa condição. Se puderem, lembrem de mim. Nem toda uma vida tirará vocês daqui.

Friday, September 01, 2006

Dá saudade de mim. O valor da devoção, a força da entrega. Só eu sei a falta que isso faz. Fui eu que arrisquei; deixei cair para levantar. Fui eu quem segurou a lágrima e, em instantes, viu a lágrima escorrer. Depois de tanto feito, feito pouco para tanto tempo, veio um intervalo diminuto, pequeno demais para a avalanche de saudade. Um dia de inquisição, marcado para o desfecho, de onde o começo fica visto, menor, muito de longe. Eu sei a vontade que tenho de multiplicar o que fui e estou sendo, indivisível, pegado em cada lugar. Mas então. Então, existe aquela menininha que ficou chorando, chorando por ter ficado. Distante de tudo, da dúvida que ameaça a ordem, a aventura que recompensa tanto tormento. Vivo o tempo do de menos. "Isso é de menos", como se tudo na vida estivesse demais. De mais, não, em hipótese alguma. Corri atrás da saia debaixo de onde estariam filhos como eu. Corri em busca da saudade e da risada. Da resposta afirmativa, resposta que negava parte da harmonia fajuta bolada para acalmar. Inquietação. Inquisição da dúvida cruel, interminável e, por acaso, lírica. Quando descobri novas notas de um piano báltico, olhei para fora e, da janela, vi um mercado semanal. Virou trilha sonora de tantos sonhos e das saudades que sinto sempre. Desesperadamente, esperamos pelo dia em que, felizes, diremos: "acho que valeu a pena". Imediatamente, reprochados, ouviremos o "acho" interrogativo, a falta de certeza inquisitiva. Acho. Mas só eu sei a dor que ameaça romper nos momentos da insuportável saudade do que não volta mais. A temível saudade das anedotas que perderam a cor, tolas e compridas, infantis e velhas, tantos os anos que têm.
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