Tuesday, September 26, 2006


A noite não está exatamente fria, mas o vento bate gelado. Têm coisas que, quando escorregam da mão, arranham. Pode ser uma sacola de supermercado, ou um encontro da própria vida. O mundo, do modo como querem ordenar, pensa em disfarçar a falta irremediável, refém dum futuro assassino. Houve uma faixa de três minutos e meio; a sinfonia de 4 movimentos. Não me perguntei qual a dor que tem cura; sei bem das que não estancam. Hoje, no caminho da estação, pensei em cada cílio arrancado, no tanto dos dentes que aparecem com um sorriso. Lembrei o sotaque de quem vive longe há muito tempo. Um capítulo de Tristes Trópicos chama São Paulo, e a cidade não vem. Olhando no espelho, o cabelo cresceu, a barba cobriu o rosto, não era assim antes. No reflexo esbranquiçado da pupila, existe um reservatório de água que não seca. Tem pingado por esses dias. Dizendo: "chora, menino, chora". Um professor, num caso de febre alta, acalmou um estudante de ensino fundamental com o mesmo imperativo. Seu cabelo grisalho encaixava no inverno, em escala de cinzas. Voltando da rua Pamplona, falei ao poste de luz: "adeu, invern"; foi um dia escorregado, voltará quando eu puder lembrar. Parece que consigo sentir o medo de quando rezei pela primeira vez, aflito. O cachorro, vira-lata, atacou o transeunte: "vou denunciar teu pai, moleque"; corri para a santa de madeira: "protege meu pai, senhora; por Deus", querendo dizer por mim. Não podia, que todo pedido, para valer, e valer melhor, deve ser maior. Os medos continuaram, houve tempo em que a oração era bem mais, duas ou três vezes ao dia; confesso que resolveu muito desespero. Porque a gente é assim; acreditar transforma o mal em bem; o nunca em para sempre. Pois, então, a noite começa a esfriar, sem vento que sopra úmido. Quando perguntarem se significa, vou dizer estou aqui. As palavras que são minhas, o texto que me esconde, escancarando, é o rastro que me explicará ao monstro que serei. Minto com freqüência, nada muito sério nem tão grande. A menina que cortou o dedo, não foi com serra-elétrica. Quando passa um tempo, fica difícil recordar a parte que é mentira, e gosto mais. O amigo perguntou: "Por quê? Fiz alguma coisa errada?". O outro explicou: "algumas coisas escorregam da mão e, quando escapam, arranham". Não entendeu, não. Mas entenderá um dia. Estou certo de que sim.
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