Renatinho, querido, mamãe põe você na cama, meu bem, aí, debaixo, as pulgas do Beto, e tem pesadelo, escuro, no carpete. Não, pituco, a gente tá aqui, preocupe, não, pequeno, pai ajuda, qualquer coisa, grita muito, sabe? Isso, benzinho, medo, não, caramba, tem a Gigirafa lá, só olhos enquanto você dorme. Sei, filhão, os brinquedos, no sono, pra proteger, então. Fantasia, Rê, fantasia demais. Nada, não, é aqui pertinho, o pai dá um jeito, salta, se for. Aí, a gente faz uma festa juntos amanhã. No Bob's, filho? De novo? Não, não, Renato, mamãe já disse, hora de voltar pro quarto, agora; a gente dorme também, ué? Ai, caramba, não, nada; cobre o rosto, não, que dá Rinite, pó no armário; naftalina, barata, também não."Renato, Renato". Olhou devagarinho: de novo, não! As pálpebras feito persiana, desvendo antes, escondo até. E quem fala, outra vez, é o Lolobo, meu deus. Quero não. Cobertor na testa não cala a noite de ninguém. Que jeito de amarrar a imaginação, o mundo de aventura que treme lá fora. "Ô, Renato, larga disso, pombas; (mais alto) tem conversa para ser. Depois, vou repetir nunca mais, tempo gasto com medo na vida é desperdício de minutos a mais de tesão".
Friday, March 28, 2008
Wednesday, March 26, 2008
- Escuta, desculpe tocar no assunto, bem particular, sei lá, até besta, talvez. É que...
- Como?
- Não, não, é que a gente, aqui, nesse boteco, tanto tempo depois, sem a alegria de antes; não sei, é, sei, enfim...
- Não entendi.
- Não, que é isso, oh, sabe, a gente, aqui de novo, até a posição das cadeiras, as mesmas, mas, não sei, tem coisa faltando, cara, sei lá, não dói aí em você? Juro: onde? Quando? Por quê?
- ?
- Sei, não devesse estar falando, puta merda, dói tanto aqui, saca? Isso, a gente, assim, tentando ser amigo de novo, de novo, de novo, porque teve antes, tão irmão do outro, quando perdeu, ganhou; depois, chuva no meio, cagadas, orgulho e, e, e... Arrependimento, acho até. Quer dizer, eu, por mim, vai saber você. Mas é que, pesado, Rafa, caramba, você, aqui, ó... Sei, sei. Ish. Os nossos pais, cara, a gente vai acabar feito nossos pais, tá vendo?
- Os nossos pais...
- Presta atenção, repara. A gente tá cagando a gente mesmo. Eu, você, o Henriquinho, a Lú, a Pamis... Por quê, deus meu? Será que não se evita; a gente cava a solidão mais dura, a morte mais difícil? Rafael, sei, você sabe também, a gente vai ficando velho, e as coisas de verdade, mulher, amigo, tudo que deveria ser para sempre, porque era de verdade, muda, perde cor, fica fraco e cheira a fraude. Cara, não sei, é que, pensando agora, sei lá, ouvindo você, adivinhando tudo que a gente não tem falado, ocorreu, quem sabe, que, poxa, sei lá, você, caramba, aí, do seu lado, com tanto nó, talvez tenha pensado, entendido, que coisa. Rafa, diz aí, nesse tempo todo, você chegou a entender por quê? Por que fica a impressão de que termina tudo meio errado, com todo mundo mudo, enterrado meio vivo, escritório ou sala de televisão? Desculpe, falando desse jeito, tão repetido, é quase bobagem. É só que não tenho peito para dizer o que mais preciso, saca? Aliás, é isso, cara; é isso que me atrapalha a vida, e é isso que me fez chegar onde não me acho de jeito nenhum.
- Poxa, Cesinha, não sei responder assim, agora, mas sei bem do que você tá falando.
Sunday, March 23, 2008
Aí, olho reflexo meu na torneira do banheiro. Prateado. Ah. De volta ao quarto, dá tempo de pensar em muita coisa. Quando, arrepiado, atravesso o corredor, fotos dos dois lados, dizendo: "vai, vai, passa, que não volta mais". Isso: eu, nesse caminho de todos os dias, nunca o mesmo, motivo de saudade, e para sempre, se pensasse minha vida no minuto em que ela, acontecendo. "Vai, vai, e não volta mais". E chego até o quarto, gaveta aberta, a cueca que tenho que vestir. "Meu deus". Até elas, agora: "vai, vai, e nunca mais". Meio arrebentadas, antes, pro lixo, não doía tanto. Hoje, enfim, testemunho que não quero largar. Pena grande dá essa sensação de perder tudo que tem a dizer. A estoniana que comi num apartamento emprestado, quem vai lembrar? E os infinitos lugares que visitou. Quando saí de Berlim, Lucía olhou o meu sapato e comentou: "se meu pai adivinhasse o tanto de viagem que uma sola pode guardar, então deixava eu atravessar o Atlântico". E nada. Porque a gente se salva. O tempo todo, a cada dia. Mas eu não. Vou de cueca rasgada, rasgando a pele, questão de honra que tudo deixe marca. Aí, num bar; não, bar, não; numa cantina, falei: sabe por que dói a garganta? Todo o tempo sem dizer o que precisa, modulando as sílabas, assim agrado os outros; aí, sentado, deixo dizer, porque me rasgo, porque a pele é para levar ferida, sola de um sapato, cueca desgastada, e, falando, inflama, entope a faringe, laringe, e derrama tudo de uma vez. Eu sei. A gente tem receio. E quando ficar velho? Se vou dizer de novo? Ou vou dormir sozinho? Não, não. Tem que ser agora, sendo vontade de um mundo para sempre.
Thursday, March 20, 2008
No te salves
No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca
no te salves
no te llenes de calma
no reserves del mundo
sólo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo
pero si
pese a todo
no puedes evitarlo
y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
sólo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino
y te salvas
entonces
no te quedes conmigo
(Mario Benedetti)
No te quedes inmóvil
al borde del camino
no congeles el júbilo
no quieras con desgana
no te salves ahora
ni nunca
no te salves
no te llenes de calma
no reserves del mundo
sólo un rincón tranquilo
no dejes caer los párpados
pesados como juicios
no te quedes sin labios
no te duermas sin sueño
no te pienses sin sangre
no te juzgues sin tiempo
pero si
pese a todo
no puedes evitarlo
y congelas el júbilo
y quieres con desgana
y te salvas ahora
y te llenas de calma
y reservas del mundo
sólo un rincón tranquilo
y dejas caer los párpados
pesados como juicios
y te secas sin labios
y te duermes sin sueño
y te piensas sin sangre
y te juzgas sin tiempo
y te quedas inmóvil
al borde del camino
y te salvas
entonces
no te quedes conmigo
(Mario Benedetti)
- Sabe, garoto, você é uma das poucas pessoas que compra livro aqui.
- Talvez porque esteja deixando de ser garoto, acho.
- Não, não. Vem gente mais velha, tudo pra ver show.
- É, as estantes estão meio paradas mesmo. Mas isso é uma livraria, certo?
- Da esquina.
- Aãh, é isso então. Promíscua.
- Estuda Letras?
- Não, não. Sou dependente de uma boa ficção.
- Meu único cliente que consegue escolher um bom livro, bêbado.
- Justamente por causa da fantasia.
- Para saltar num livro...
- Não, pelo contrário. É pular para fora deles, com eles.
"Era garoto ainda oito anos se tanto; eu-ela minha mãe num asilo de velhos para visitar minha avó; levei comigo pequeno urso de pano novinho em folha; colega de quarto zuruó dela minha avó não tirava do colo boneca surrada escamurrengada que só vendo; coração confrangiu; horas depois quando já entrava na charrete pra ir embora súbito arrepiei caminho entrei no quarto dei ursinho de presente pra amiga dela minha vó; agora aqui ixi fantasma semi-evanescente no corredor deste Fórum aguardando sentença hã logo-logo trancafiado dez quinze anos talvez numa cela mondongueira qualquer; assassinato; ser humano é mesmo misterioso imperscrutável."
(p. 22 - E. A. F.)
Tuesday, March 11, 2008
É, então, tem gente que explode aquela buchinha esbranquiçada da Maria Sem Vergonha. Gozado, né? Tem, sim. Gente que dança jazz sozinho, que adora filme pornô, ou prefere ficar perdido no suspense de um quadrinho. Ou diz "míni" quando quer dizer "completamente". Sei, sim. "Míni-apaixonado". Eu mesmo conheci gente assim. Quer dizer, gente que sentou para tomar cerveja, fazer amigos e ficar mais velho, gente que elogiou Rakes, chutou o balde para falar de Jarmusch e quebrou palminha logo no primeiro show do Bazar Pamplona. Com entrada pela Jaú. Pode ser? Não sei direito, nem escolhem para acontecer, saem falando, e fazendo, e, quando atinam, tá tudo feito já. E batizado de Milocovik, num aniversário do Cláudio, em 2006. Mais um ep de algumas músicas, uma letra em três idiomas e idéias que... Às vezes confundo o nome, com tantos apelidos. Se é Toni, Gus ou Tonini. Se é aniversário do guitarrista, ou cumpleaños da própria banda. Vai saber. Gente que não fica parada. Que, pulando, flutua numa seqüência de fotos tiradas contra o céu. E tem cachorro com nome de roqueiro, piada cafajeste, tatuagem no braço inteiro, dúvidas sobre fimose e uma coleção de absurdos. Que coisa, hã? Não, não. Eu? Eu, não! Sou sortudo só - e não perco show que seja dessa banda de amigos meus.
Friday, March 07, 2008
Tá, tá, posso estar virando um filho da puta, Regina, mas e daí, o que é que eu vou fazer? Porra, tentei tantas vezes, de um fundaréu de jeitos. Mas tá todo mundo cagando regra, cagando na sua cabeça. E peidando baixo, olha só. Baixo. Se um salário de merda ou, pior, muito pior, o descaso com qualquer naco de respeito. E uma última coisa: filho da puta não tem peso na consciência, tá sabendo?
Wednesday, March 05, 2008
Sete ou oito semanas antes, sonhara com o mesmo paciente, em condições diferentes, jogando handball – incrível destreza para um canhoto, se há sentido em dizê-lo: um canhoto destro –, numa quadra igual à do colégio em que estudei. No sonho, marcara um, dois, três gols, correndo pelo lado esquerdo, arremesso firme e bola cruzada. Então, sem explicação razoável, caíra, em paz, morto já. Não houve tempo para aflição, pois acordei imediatamente. Quando liguei para casa, no domingo seguinte, mamãe comentou sobre a operação agendada, cirurgia no coração. Quatro dias depois: “alguma coisa deu errado. Perdeu a fala, sabe-se já, e os movimentos do lado esquerdo”. A destreza, imaginei. Perdera a destreza. A notícia viera para espantar; por trás da tragédia, escondia-se uma perplexidade geral, pesar comum a quase todo mundo: “ele, bem ele, que tanto ganhara repetindo o diálogo dos outros.” Impensável, do lado de cá, imaginar o que possa ser não ter voz para pedir pela última renúncia: “prefiro morrer”.