- É no silêncio, Ângela. Talvez devesse ter repetido antes. E mais vezes. Na solidão de um quarto escuro. É aí que se testa o tanto de alegria que resta na gente. Eu sei: saímos de longe, arriscamos o sonho juntos. Frágeis na cidade violenta. O diálogo delicado, arranhado; dor acumulada com o tempo. Agora, não tem dado mais. Quietos, calados um do lado do outro. Li, você sabe onde, que o amor precisa respeitar a quietude de cada um. O amor é em dobro quando a solidão compartilhada não machuca. Mas é bem menos da metade quando ela reina, apesar da companhia. Ou, que triste, por causa dela. Muito silêncio, alguma agonia. Notou? Quando tentei pensar no primeiro dia, no começo da falência da gente, do nosso arroz e do nosso feijão... Foi a xícara do lado errado na lava-louças, lembra? Incrível, não? Ali, a gente ainda andava falando demais. O que, agora, claro, é evidentemente um mau sinal. Demais, de menos. Depois da discussão, corri para sala... Lembro, na dúvida, diante do som: se era Nirvana, ou Reich, num barulho de trem desgovernado. Então, outras xícaras quebraram no meio do caminho. Você trocou o jantar por livros vagabundos, "agora não posso, Renato, estou quase terminando". Acabando com alguma promessa linda, jurada muito antes do fim daquele capítulo. Teve o dia em que você entrou no quarto, cedo do trabalho, eu, pelado, com a mão cheia de tesão, só pra mim. Daí, você gritou alto, disse que não aceitava, não na sua cama. E disse SUA com força, ênfase para eu me sentir intruso. No lugar onde eu dormia, numa casa que era para ser minha. E vieram todos os possessivos, em tudo que é número, gênero e grau. Meusíssimo, cheguei a dizer. Com meu "meusíssimo talento", foi. Possessivos que, em alguns momentos, forjaram um "nosso", tão egoísta que rompeu o desespero, encarnando as seqüelas dos melhores sonhos que precisaram deixar de ser "meus". E era para a gente ter tido o Rafael, por pouco. Ou por causa das meias mal vestidas, do meu terrível hábito de despentear o cabelo. "Com 20 anos, ficava bem, lindo; agora, ah, agora, não sei se está legal". Meu jeito e minhas manias ilegítimas. Cada vez mais insuportável. E veio a primavera, você pediu para viajar sozinha, com a Vanessa. E eu não senti saudades. E eu ouvi muita música. Pärt, Broken Social Scene e Mercedes Sosa. Teve Caetano também. E não senti saudades. Dormi pelado, dancei sozinho, escrevi bobagens e peidei alto. Nojento. A saudade que tinha era de mim. Você chegou, eu batia pernas na Cardeal, esse foi meu cálculo. Tinha esquecido, só isso. Por que fui dizer "só isso"? Você cuspiu veneno, virou fera, bruxa feia, agigantou essa tensão tão feminina que segura o corpo o tempo inteiro. E berrou cretinices, ameaçou, disse umas mil vezes "não". E eu, irônico: escapou uma pequena risada. Com vontade daquele começo, sorriso de melancolia. Porque tivera a xícara no meio do caminho, a vontade de comprar um cachorro, de criar a tartaruga, sem nenhuma traição. Juro, Ângela; meu sonho era poder não precisar gozar em nenhum outro lugar. Quem não espera fazer das escolhas importantes o orgasmo eterno? A ereção mais poderosa. Mas eu errei no sorriso, na hora, no lugar. Foi gafe mesmo, inocência, efeito de entusiasmo bobo, ternura da boa fantasia antiga. A gente ri da gente quando a gente falha. Para não chorar. Ângela, meu anjo, é assim, querida. Um amor que foi meu numa vida que está deixando de ser minha. Deixando de ser, quero dizer. Porque nossa vontade de ter as coisas, e só ganhar no meio do caminho, não resiste à beleza dessa lei maior que são a fatalidade, a sorte e a saudade escondidas em cada novo dia.
Thursday, September 27, 2007
Tuesday, September 18, 2007
Ana, querida,
sólo te pido buena música.
Y nada más.*
A mão invisível de Mr. Smith tropeça, a economia entra em colapso e, em resposta, machucado e desiludido, o último respiro de humanidade vem em forma de um levante cultural intenso, sem muitos recursos ou organização. A crise do bolso alçada à crise de dignidade. O homem sem dinheiro, rebelde, decide que a batalha é por respeito. A cultura, então, registra a imensa mágoa. Disseram Argentina? O cinema, a literatura e a nova produção musical do país arriscam um bonito sim.
Em meio a dezenas de filmes instigantes, do delicado El perro ao cáustico Chile 672, passando por Lugares comunes e Abrazo partido; ao lado da explosão de uma nova e talentosa geração de autores, registrada em publicações como La joven guardia e Nuevas Narrativas (volumes 1 e 2), o eco da bancarrota argentina de 2001/02. Na música independente, não foi diferente. Que dizer do alerta publicado pela Índice Virgen no momento mais doído da crise? "Por dificuldades maiores de la Argentina, não publicaremos discos durante o presente ano". O manifesto de cada um, esperançoso com a passagem da tempestade, já amansada quando da aparição do otimista selo portenho Estamos Felices, em 2004.
Com essa ou qualquer outra explicação, a cena independente argentina assiste, desde finais de 2005, a uma coleção de grupos e artistas munidos de extraordinária criatividade e competência. A seleção de discos sugeridos abaixo não é completa nem definitiva; pretende, mais que nada, montar um painel, quase caleidoscópico (em função da variedade de gêneros), do atual pop independente argentino.
A atual música independente argentina em 8 discos essenciais.
Oui! - Juan Stewart (Estamos Felices, 2007)
Oui! é lindíssimo. E instrumental. Comprido em alguns momentos, triste em todos eles. Melodias doces, que não escondem admiração por Sonic Youth, desdobram-se em fases, anunciadas por barulhinhos eletrônicos, seqüências de guitarra ou teclados e gaitas para niños. Trilhas sonoras, indie-rock, ambient, indietronic, tape music e post-rock aparecem em ritmos lentos, batidas dançantes e paisagens encantadoras. Juan Stewart, ex-baixista/tecladista do Jaime sin tierra, é parada obrigatória da música independente argentina.
http://www.myspace.com/juanstewartUn millón de euros – El mato a un policia motorizado (Laptra, 2006)
Recentemente, o quarteto de La Plata alcançou certo destaque no Brasil, ao aparecer na Tramavirtual e viajar até São Paulo para show único na segunda edição do Guifest. Guitarras altas, letras inteligentíssimas, clima "kraut campestre" e refrões de "cancha" fazem de Un millón de euros um disco genial. "Amigo piedra" é tão ou mais clássica que "Navidad en los santos", e a faixa-título deixa vontade de muito mais.
http://www.myspace.com/elmatoaunpoliciamotorizadoNo es - Coiffeur (Estamos Felices, 2007)
Coiffeur é canción com diversos elementos do folk anglo-saxão e algumas melodias indie-pop. No es, segundo trabalho do cantautor da província de Buenos Aires, combina poesia contemporânea e tradição da música popular latino-americana. "Tan atentos a que nada", "Cómo decirlo... yo también" e "Estampita" são belíssimos recortes de um disco cantado com beleza e visível conforto.La vida secreta - Félix (Globo Rojo Discos, 2007)
As boas letras são característica comum a diversos projetos da nova música independente argentina. Félix Cristiani sabe muito bem disso. Em La vida secreta, os arranjos de cordas, teclado e vozes embalam versos como "Somos personas amables, capaces de destruir", ou "El verano parecía destronar los enigmas de un invierno sin igual". Artaud e Burt Bacharach. Pop e psicodelia de muita poesia.De los valles y volcanes - Hacia dos veranos (Scatter Records, 2007)
Disco inteiro da banda que estreou, em 2005, com o ep Fragmentos de una tarde somnolienta. Linhas cruzadas de guitarras, melodias circulares, às vezes dois ou três movimentos, tudo muitíssimo bem executado. O sotaque cadenciado, charme dos amigos argentinos, encarna dedilhados mansos nos 9 temas instrumentais do disco. Muito recomendado.Álbum para la juventud - Juan Ravioli (Azioni, 2006)
Arranjos belíssimos, camadas e camadas de violões, guitarras, baixo, órgãos, sax, cello, trombones, trompete e coros, em repertório diverso e, acima de tudo, pop. Juan Ravioli é uma espécie de virtuoso da cena independente argentina. Escreve, compõe, toca, arranja e conduz em cada uma das 12 canções de Álbum para la juventud. Emoldurada em harmonias ricas, a voz de Ravioli aparece clara em versos como "Estoy contando los últimos tres secretos que nunca conté".S/t - Norma (Cala Discos, 2006)
Arranjos econômicos e melodias aceleradas num punk de nuances guitar-pop. A gravação modesta não impede que temas como "Chalet", "Enamorado" ou "Niños", cheios de coros para fãs de Rakes, pintem os motivos de passos frenéticos em quartos apertados. De La Plata, con mucha ironía, Norma – o anarquía? – para el mundo entero!Uno – Ondo (Pelo Music, 2006)
Sebastián Carreras, um dos idealizadores do selo Índice Virgen, também membro do bem-sucedido Entre Ríos, aposta em uma variada gama de melodias eletrônicas no primeiro disco solo, publicado pela não muito independente Pelo Music. "Mirame" dá a medida da beleza do indietronic guardado em Uno, álbum de belíssimas letras, música digital e pop inteligente.* Texto originalmente escrito para o informativo da Sensorial Discos distribuído no Festival No Ar Coquetel Molotov.
Monday, September 17, 2007
Aquela foi a primeira vez. Chegar em casa, pratos colocados. Desde bem pequeno, o lugar das coisas na mesa. Quando pensou em preparar a surpresa, e fez; quando decidiu "será hoje", e foi, teve a melhor das intenções. Abriu o armário, tanta prata perdida no fundo. Usou o mais bonito. Contou três pratos, eram três em casa. Depois, separou os talheres, o jogo americano, os copos, o descanso e os guardanapos - como era mesmo em inglês? Saiu; do jardim, trouxe uns cordões de Hera, tudo arranjado, delicado. A mãe chegou cansada; o dia era difícil, que vida complicada. Entrava sempre pela porta da frente. Atravessou a sala de estar, de onde viu a toalha bordada. Que bom. Mais perto, o garfo no lugar errado, que amor. Destacou uma folha do ramo enrolado, a mais branquinha; sentiu o perfume e guardou, tocada, no bolso esquerdo da saia. Riu: viu graça no jogo americano, enrugado, com exagero e candura, sobre a toalha amarelada. Chorou um pouquinho, tanto amor, meu Deus. Soube, com doçura, alegria no coração, obra do filho menor. Fechou os olhos, o rostinho dele outra vez. O cheiro da Hera, o tamanho do cuidado, a atenção. Que vida complicada.
Monday, September 10, 2007
Sunday, September 09, 2007
"Crecer, quizá, no sea más que amontonar verdades propias. Ir dejando de lado, paulatinamente, las verdades de los otros para poner en su lugar las nuestras. Y en el caso de los varones, además, las verdades ajenas, aquellas que hay que ir dejando paulatinamente a un costado para crecer, se parecen demasiado, se me ocurre, a las verdades de nuestro padre. A la patria, en algún sentido.
La patria.
Siempre la patria.
Ese montón de verdades y mentiras heredadas, ese lugar conocido desde donde comenzar a pisar el mundo; esa lengua a medio hacer, sin terminar. Contenidos que se esconden en formas, la patria; dudas antiguas, dudas comunes, maneras de la fiesta y maneras de morir, también.
Por eso.
Sospecho que crecer, quizá, no sea más que animarse a matar al padre. Enterrarlo una tarde cualquiera con lágrimas en los ojos. Llevárselo puesto encima. O convertirse uno mismo en padre. Hacerse patria, de alguna forma, reconociendo de antemano que cualquier día próximo nuestros propios hijos también deberán matarnos. Discutiendo lo heredado; apropiándose de algún lugar nuevo, todavía sin pisar; terminando salvajemente y por un rato, nomás, de construir la lengua; deformando con entusiasmo; dudando, dudando de todo; luchando por aquello en lo que crean; festejando distinto; no muriendo.
Sobre todo no muriendo.
Como la patria.
Siempre la patria.
Y mi padre no puede levantarse de la cama durante todo el domingo.
No puede."
(Papá, p. 87, Federico Jeanmaire)
Friday, September 07, 2007
Ser el puente, chico. Eso es. El puente, chaval. Aquí, allí. Antes o después. Más que todo: entre, durante, el camino. Sé "mientras". Sí, sí, eso, señor: sigue con tus sueños.
Wednesday, September 05, 2007
Hoje, ônibus, Santiago.
Daqui, desse banco, mais interessado nas pessoas de dentro. Que na janela lá fora. O sotaque da menina loira, do rapaz moreno. Sou daqui. Eu venho de longe, retruquei, assim mesmo, voz alta, resposta a pergunta nenhuma. Em português. Olharam: você, estrangeiro. Fechei os meus, com a mão: sou, nasci para ser em mundo diferente. Uma menina cantava igual, no disco que tinha, tendo ainda, no lugar onde nasci. Para ser, desmanchado, em cada momento, em cada contato. A bola de sorvete: o gosto de gianduia jamais repete o mesmo gosto. De gianduia, ou de qualquer gosto diferente. Substantivo era para ser em maiúsculas, porque existem, sentimento nosso, dobrado na língua. ich möchte ein Buhr. mein Buhr, minha vida em Santiago, em Berlim, ou Barcelona. Eu sou, porque sinto assim. Sou de qualquer lugar.