Monday, November 30, 2009

Há coisa de três horas, nos falamos - o skype está aí para dizer que o tempo não passa. Desde que o contraste da câmera esteja desajustado. Nesse caso, não estava, e pude ver, bem clara, a bochecha rosa e redonda do Milo, três meses. Kadri, a mocinha loira que conheci com 17 anos, não se casou, teve o primeiro filho: as pessoas escolhem entre uma carreira e uma família. E quando você se esquece de escolher entre as duas?

Kadri, você não sabe que está de volta a este blog, não sabe inclusive que já esteve antes. E não lê português. Agora, você tem um filho, cute boy; não sei se tem uma família, mas sei que não tem profissão - e quem precisa de uma?

Enquanto Kadri errava o inglês, pensei que a Estonia é fria em novembro. É fria o ano inteiro, ela, corrigindo.

Milo, garoto, vou mandar um presente para você. Não tenho resposta alguma sobre família, sobre carreira; é um pôster bonito de um moleque jogando futebol. Quando puder, vou estar velho já, arranje um jeito de me dizer se agradou.

Monday, November 23, 2009

Luisa pediu para eu ligar. Não liguei. E fomos felizes para sempre.
Quando digo que conheço o som do vento, e conheço, penso numa música que ouvi, mais de uma vez na vida, todas tremendamente especiais, sentindo um pouco de frio. O som do vento é como o sol ou a chuva, fechando um domingo. A pizza que comia na casa da minha tia-bisavó, gelada (a casa), tinha o mesmo tilintar do sino de vento que toca na varanda. Não é nada especial comigo. É o vento. Existe uma rua que fica deserta, à noite, do outro lado do oceano, num bairro de mais trezentos anos. Para baixo da terra, o assobio fica alto quando os trens do metrô estão estacionados. Pacaembu. São Paulo. Mil novecentos e oitenta seis. A multidão fazia "ola", o ruído mexia com os vizinhos - eu, com um copo cheio de pó de arroz na mão, só ouvi o vento. Quando leio Vidal-Folch, quando vejo Arcand, quando saio ou chego de viagem, quando sei que estou dizendo adeus. Meu cabelo não mexe, o olho não pisca... Se o braço arrepia. Não me perguntem o que estou olhando quando não estou olhando para ninguém. Essas coisas.

Quase como quando errei o braço na saída do colégio, não era minha mãe. Meu papagaio dizendo: "vou sentir vontade, vou sentir vontade", a primarada tomando picolé de limão, na caixa que minha tia trazia do mercado, debaixo do prédio do meu vô, com nome engraçado, Eliseo, Eliseo, acho que vou sentir vontade.

Depois veio a ideia de tocar a campainha e correr para o outro lado. Fui flagrado: só ouvia o vento.

Sunday, November 22, 2009

E ninguém entende, não entendi, a violência das coisas que a gente faz pela última vez. Adriana fechou a porta do quarto, tchau; tchau, quarto. Depois de 17 anos, a luz entrando daquele jeito, através daquela janela. Essa fresta que fica para trás, não é só fresta, nem só para trás. É para sempre, e a ideia de para sempre, confusa, pareceu apontar para frente, apesar das coisas que morrem para sempre, para trás. Foi saindo de mansinho, a cama desmontada, a última lembrança desmontada, ia com ela, tão diferente, armada, depois, num outro lugar. Vai, cama; vai. O corredor vazio, as paredes vazias, o medo do vazio; quando a gente fica esvaziado, a cabeça transborda, tudo acumula ao mesmo tempo, a pizzaria na noite da despedida, o cigarro dividido, não sei ficar cada vez mais longe das coisas que sempre quis perto de mim. Adriana chora um pouquinho, o canto do olho, enquanto desce a escada, e as coisas repetem "a gente esteve aqui", "a gente esteve", "esteve aqui". Esse verbo é o que mais machuca. Os advérbios terríveis, de tempo e de lugar. Ontem, lá. Hoje, longe. Ai, caramba, Adriana faz os últimos degraus, quando falava degrais, a mãe corrigia, porque chapéu, chapéis, não, florzinha.

Sunday, November 01, 2009

(Um relato autobiográfico, se você acreditar.)

Tamara não era exatamente feia. Tinha o cabelo avermelhado, ondulado, a pele clara e uma pinta perto do lábio superior, à direita. Nenhuma questão séria, quando você tem bem mais que dezesseis anos. Tamara tinha 15.

Pensando agora, mais velho, vejo que era sozinha, e sua agressividade, resposta para a solidão imposta pelos outros. E produto do inconformismo por também se sentir culpada pelos intervalos sem ninguém, a fila da lanchonete da escola, desacompanhada.

Não saberia dizer de que maneira a gente se cruzou. Não me lembro. Tenho a leve sensação de que foi depois do horário de aula, num canteiro de pedra de construção, onde ficavam algumas barras de exercício. Ela provavelmente perguntou: "5a B"? Eu: "Não, não. C.". Depois disso, seguimos para a fila da cantina - era assim que chamavam no meu colégio - e pedimos umas cinco balas gordinhas numa embalagem quadrada. Me falha o nome agora.

Tamara contou que era filha única. Que tinha cortado o cabelo na altura dos ombros porque tinha sido difícil com o cabelo comprido. Falou da tristeza de ser ruiva. Cabelo alaranjado, frisou - me lembro desse detalhe. Comentou sobre a mãe, divorciada, figura estranha, distante, faz falta, viu? Depois de 1 ano na escola, ainda se sentia nova, por fora das coisas, por fora das pessoas, com medo, com desprezo, com vontade de operar outro sistema de relações. Em tempo?

Interessantes as confissões de Tamara. De longe, sozinha, acompanhava alguma coisa em comum que havia em mim. Circulei entre diversas turmas (meu tio diz "turma"), tive bons amigos, mas sempre fui avulso. Uma folha de caderno com os furos rasgados, na margem esquerda. Acho que foi isso que Tamara viu aqui. Você gosta das pessoas com quem você anda? Pedi uma coca-cola.

Tamara sabia, antes de qualquer pessoa, pessoas com 15 anos, que a vida é uma responsabilidade. Constatação cara; tudo ficava muito mais difícil. Ela não gostava de refrigerante.

Duas semanas depois, Tamara me chamou no intervalo. Meus amigos olharam com surpresa. "Daqui a pouco, passo lá", e fui falar com ela. Estava mais triste que o habitual. E mais brava. Irritada, insatisfeita. Querendo se vingar de si mesma, o que doía de um jeito diferente. Perguntei se estava tudo bem, procurando saber justamente o que estava mal. Tamara disse que queria se matar. Que já tinha tentado se matar. "Sério?". Perguntei: "como?". Não um "como" de "como assim, Tamara, o que você está fazendo da sua vida?". Foi um "como" curioso mesmo, de alguém sem qualquer ideia dos métodos e razões pelos quais alguém se mata.

Tamara olhou fundo - e reparei, de novo, na pinta. Estava decepcionada. Profundamente triste. Foi quando precisei dizer: "tchau, estão me esperando". Antes de eu ir embora, fez um "ei", pedindo meu último pedaço de atenção.

- Você nunca vai entender, Fernando, mas quando me matei, eu não morri.
free web stats