Carla está ansiosa, diz o jogo de paciência, armado sobre a mesa de jantar. Está contando os minutos - embora segure as cartas pelo dobro de tempo, antes de reprovar os naipes e arriscar combinações. O relógio do micro-ondas marca 22h47. Na realidade, 22:47.
Carla bebe um gole d'água. Cantarola um trecho de "Além do horizonte". Pensa nos tijolinhos do prédio onde viu um apartamento para alugar. Gostou de alguma coisa muito parecida num blog com dicas de Nova York. Carla tem avaliado, nos últimos três anos, se deveria ter estudado Artes. Viajado para Quito. Ou dormido com Fernanda, quando houve o convite. Descobre que as cartas estão terminando; a vida atrapalha o jogo que atrapalha a vida e o próprio jogo. Amanhã, dia de inspeção veicular.
Carla quer saber para que servem as coisas. Para que serve tudo isso.
Anda agitada. No trabalho, pediram para preparar uma solicitação de compra de material de escritório. Nunca fez isso. Nunca quis fazer. Imagina um tempo totalmente sem rasuras. Sem esboço. Sente certo pesar pelos enredos que não se ajeitam com os erros do caminho. Liquid paper podia ser um título do Bauman. As piadas de Carla não têm a mesma graça.
Carla busca o telefone no escritório. A base ao lado do computador. Coça as costas da mão direita antes de discar um nove zero. É uma emergência: está com um medo terrível de não dar conta de outro dia perdido.
Wednesday, October 28, 2009
Monday, October 26, 2009
Um grande amigo deixa o copo sobre a mesa, ajeita o cabelo, raspando as unhas:
- E como é que a gente faz para não se afogar em saudade? Nada, na vida, consegue ser tão perigoso. O medo das coisas perdidas, se perdendo. Está vendo? Só isso. Acima de tudo, isso: quem aceita ficar sem o caminho de casa? Não guardei foto nenhuma de quando eu era criança. Meus discos velhos estão velhos. E eu ando com saudade. Não sei se você entende quando digo isso. Que o mundo vai fazendo falta pelas coisas que faltam no mundo. Que a gente demora dois, três tempos, na hora de dizer tchau.
Bruno, não falei nada ontem. A cerveja. O presunto parma. A vontade de ficar em silêncio contou muito também. Algumas palavras não me fazem bem. Quando entendi que seria a última vez que mexeria no vasinho de azaleias com meu vô, porque simplesmente entendi - e tinha 13 anos -, travou a garganta de dor, que era saudade. Porque aquele vaso não era aquele vaso. A azaleia, só a azaleia. Saudade, no singular; saudades, no plural: tudo do mesmo tamanho. Muito mais que o dobro do meu.
Tuesday, October 13, 2009
Claro, Eugênia anda muito nervosa. Estou tentando entender. Ontem mesmo: ficou irritada cortando a unha do pé. Grande antes do tempo, declarou. Não quis emendar, para não agravar a tensão: a gente leva a vida assim, meu amor: tudo tem tempero de antes do tempo. A Magda ligou aqui em casa, perguntou como estavam as coisas. Fiquei sem saber o que dizer. Passei o telefone. "Não. Não. Não". Não quis saber o que a Magda perguntou. Visitei um petshop hoje à tarde. Ou seria uma petshop? Perguntei o preço do Chow Chow. Bulldog é melhor para apartamento. Não pode custar caro, melhor se der pouco trabalho. Ela gosta de cachorros? Desde que a gente se conheceu, Eugênia fala da Letícia, uma Pointer que ganhou no aniversário de 8 anos.
Antes de voltar para casa, estendi o caminho até a livraria que ainda vende discos, procurando alguma coisa para mim. Escolhi Veljo Tormis. Coros não podem ser cantados numa língua que a gente entende.
Tuesday, October 06, 2009
Difícil imaginar um círculo que não seja suave e amigável. Desenhei três sobre a folha que tenho aqui na frente. Curioso: só pensei em coisa boa. O primeiro, smile. Depois, um sol. O último está olhando para mim: mesmo vazio, não me incomoda. Não é novidade, a gente fica curvado com o tempo - otimista: sintoma de alguma coisa melhorando. Aceitar o mundo do jeito que ele é, sem explicação, deixa a gente mais redondo - e frágil também.
Não vou dizer no que vou pensar hoje à noite. Porque não é o rio escuro de ontem. Não é o pão de queijo de terça. Não é. Só não digo porque acredito em olho gordo.
A Ângela perguntou se eu queria trepar antes de dormir. Desse jeito mesmo: "quer trepar?". "Não, obrigado", respondi, baixinho. E pensei na tia Cida: "por favor e obrigado, Márcio". "Por favor e obrigado, meu filho". Para tudo (a danada reforma ortográfica não me deixa dizer o que eu quero).
Coloquei o fone no ouvido para ouvir Elliot Smith. Agradeci com um "obrigado", sagrado - me desobriga de qualquer dever meu.