Carla está ansiosa, diz o jogo de paciência, armado sobre a mesa de jantar. Está contando os minutos - embora segure as cartas pelo dobro de tempo, antes de reprovar os naipes e arriscar combinações. O relógio do micro-ondas marca 22h47. Na realidade, 22:47.
Carla bebe um gole d'água. Cantarola um trecho de "Além do horizonte". Pensa nos tijolinhos do prédio onde viu um apartamento para alugar. Gostou de alguma coisa muito parecida num blog com dicas de Nova York. Carla tem avaliado, nos últimos três anos, se deveria ter estudado Artes. Viajado para Quito. Ou dormido com Fernanda, quando houve o convite. Descobre que as cartas estão terminando; a vida atrapalha o jogo que atrapalha a vida e o próprio jogo. Amanhã, dia de inspeção veicular.
Carla quer saber para que servem as coisas. Para que serve tudo isso.
Anda agitada. No trabalho, pediram para preparar uma solicitação de compra de material de escritório. Nunca fez isso. Nunca quis fazer. Imagina um tempo totalmente sem rasuras. Sem esboço. Sente certo pesar pelos enredos que não se ajeitam com os erros do caminho. Liquid paper podia ser um título do Bauman. As piadas de Carla não têm a mesma graça.
Carla busca o telefone no escritório. A base ao lado do computador. Coça as costas da mão direita antes de discar um nove zero. É uma emergência: está com um medo terrível de não dar conta de outro dia perdido.
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