"Yo soy así. O me olvido en el acto o no me olvido nunca."
(Esperando a Godot, p.97)
(Esperando a Godot, p.97)
Personagens que estão contidos. Incontidos.
- Sei, sei, sei. Nada garante. Ninguém garante. Mas vou ter tentado. Posso estar enganado, porque sempre podemos; mas acho que não, acho que, como pouco, vou ter essa consolação... Ter arriscado por um erro que é, que foi, meu. Quero isso. Quero sim.- É, acho que entendo. E acho que você tem razão.- Tn, tn. O que menos tenho tido nos últimos dias é
isso. Quero mais prazer e menos realidade.
Os dedinhos de Eduarda, Eduardinha, deitavam sobre as teclas de piano com aquela delicadeza grande demais para mãozinhas tão retraídas. "Variação no 1", anunciou. Ahh, ela tinha sempre aquela melodia. Bonita, suave e, saudade, curta demais. Mas, depois da "Variação no 1", chegava a no 2. E, então, vinham a três, a quatro, a cinco, todas para acabar na sétima. Um pouco antes dessa-é-a-última, Eduardinha exercitava os dedos, media o alcance e espreguiçava com toda a educação. Todos vigiavam a melodia, na expectativa de que, algum dia, a variação perderia o caminho. "Está tão bem ensaiado". Estava. Demais. E, quando entrava a quarta, a melodiazinha crescia, o dedo gritava, com dor. Aquilo era quase infantil, mas era tão, tão lindo, que-beleza-menina. "Aprendi com Kädi", repetiu. Sim, aprendera. Com Kädi, jovem estoniana, extraviada já no tempo, que, por pouco mais de ano, passara as tardes de sexta-feira cuidando da quem-é-a-artista-da-família? Mais tarde, quando subiria para dormir, que-já-é-hora-de-criança-estar-na-cama, puxaria a cadernetinha da primeira gaveta do criado-mudo patinado, que, por mudo, guardava todos seus segredos, em confiança. Confiança era também a primeira palavra que inaugurara a agendinha, oito meses atrás. Mas, hoje, depois do pequeno recital, as palavras eram "variações que me fazem sorrir, porque a minha vida, e a de todo mundo, acho, é quase assim: pequenas versões de uma mesma melodia que, na virada tímida, ganha todo o valor". Virou-se um momento e, esticando o braço direito por cima das almofadas que enfeitavam a cama, alcançou o play do toca-fitas. A música engasgou um pouco. Olhou preocupada. Mas, depois dos primeiros arranhões, entrou a cançãozinha. A cada dia, ou cada noite, em que a fita voltava a roçar, o apito era diferente, e a lembrança, ou aventura imaginada, ganhava motivo novo.
Quando acordou, o rei do Único Céu, num ato de pouca razão, decidiu abrir, de uma só vez, os portões para o todo azul. Esperanças e mentiras, gotas e colheradas, tapires e rinocerontes, abraçados e enlanguescidos, desesperados, famintos, generosos, mesquinhos, mesas e abajures, lilases, vento e tapetes, todos, todos, em tumulto, correram por esse-lugar-é-meu. Pura violência. O rei de herdeiro nenhum proferiu as últimas palavras sob estrondosa bagunça e expectativas de alguns. Seu alerta foi soprado em voz grave e com palavras corriqueiras, abafado por gorda histeria. Aqui - disse ele -, é bom que se saiba, todas as desculpas serão indeferidas. Ui, sai fora que eu quero passar. Vai, anda filho da puta. Mas vai ter lugar para todo mundo? Não, Eilane, não podemos esperar a sua mãe. Meu pé, minha perna, pelo amor de Deus. De Deus. De Deus.