Num dia frio desses, na Aclimação, acho (no máximo, Paraíso), Juliana está sentada no chão de taco do quarto, arrumando as coisas, separando os papéis, os livros e os recados, entre as caixas que pegou no Pão de Açúcar, tudo para acelerar a mudança, que precisava ter sido na semana passada. Juliana está olhando a porta azul-celeste, enquanto pensa na foto que o amigo postou, os pés quase chegando no céu, a porta da entrada ficou num amarelo lavado e escorrido. Ganhou Rayuela de presente, desse mesmo amigo, anos atrás, quando estava mudando de emprego. Fez um porta-retrato com a foto de Cortázar. No pacote, estavam Jogo da amarelinha e uma coletânea de poemas da Hilda Hilst.
Enquanto faz as malas, e decide o que vai e o que fica, enquanto se prepara para mais uma casa, enquanto anota mentalmente todas as casas pelas quais passou, foram muitas nos últimos anos, uma porção de ideias, com jeito de saudade, agrupam-se, organizando o sentido de períodos diferentes da própria vida. Quando fez 15 anos, e teve festa surpresa; quando deixou de viajar para a Bélgica para ficar com o ex-namorado, quando escolheu estudar Artes, quando descobriu que transar era fazer sexo, quando ouviu um disco do Brian Eno e chorou de canto, quando ouviu um disco do Caetano e chorou de frente, niguém, nenhuma obra conta tanto do Brasil do século XX. Um sapato, desgastado, fez Juliana pensar no dia em que foi embora da casa do último namorado, marido quase, saindo desesperada, sem levar quase nada, volto depois, sem voltar, o peito doendo tanto, o mais que pode doer uma parte do corpo da gente, o olho embaçado com tanta lágrima, tentando não derramar, chorar, se isso vai resolver alguma coisa, quem sabe passa, quem sabe, e a gente torna a dar certo. Não deu.
Juliana pensa também numa festa de aniversário, num apartamento dos Jardins, bebendo alguma coisa, nem tantas assim, um copo ou dois, se lembra, cerveja e whiskey, tentando virar adulta, se vira, o Alessandro chegando perto, um beijo de brigadeiro, não lembro, me lembro, quase nada; Juliana na guarita, esperando o pai vir buscar, ia embora com a Talita, nossa, não lembra, me lembro: Juliana excitando Gilvan, a alça esquerda do vestido caindo, se acontecer, não lembra, se deixar, me lembro, o pai da amiga chegou, entraram no carro, não aconteceu, só tchau e brigada.
Juliana está mudando de casa. Está mudando de bairro. Mudando de amigos.
Num determinado momento, ainda no chão do quarto, sentada, separando os volumes de História social da arte, encontra o Livro do desassossego, que abre aleatoriamente na página do projeto de sonhar. Sosssega. Corta a silver tape. Levanta e vai até a cozinha beber um gole d'água.