Friday, August 21, 2015

Existe uma Rambla em Terrassa. Ela sai de um lugar alto para dar num lugar baixo. Você consegue fazer a descida, olhando malas de pequenas lojas de chineses ou comprando flores de bolivianos. Consegue escrutar vitrines iguaizinhas do outro lado do Atlântico. Pode comer uma empanada ou um arroz temperado, se quiser. A Rambla de Terrassa tem um museu, com um ótimo restaurante. 
Numa manhã úmida, de um casamento estranho entre uma névoa espessa e raios de sol muito amarelos (pelo reflexo das próprias microgotículas que hidratam o rosto, talvez), Sergi sai para pegar o trem, segurando o telefone na mão. Ninguém está chamando. Sergi desliza a longa playlist de rocks e outras canções, em busca da faixa preferida de uma semana que ficou tanto tempo atrás. Imediatamente, pensa no clipe, assistido, com fones de ouvido, diante de uma tela funda de computador. Se lembra também do dia em que, dançando a música numa pista, torceu o joelho, tanto o esforço de sincronizar com o tempo da melodia, lento, tratando de tocar o espaço todo com um corpo que sequer alcançava o casal ao lado. Fez tudo isso em câmera lenta, e, agora, tudo aquilo ficara tão curto numa vida nem tão comprida assim. 
Sergi decidiu ouvir a música porque acordou com um vazio no peito. Um vazio que, na verdade, era enchente, transbordando de ondas cujo nome nunca lera em nenhum lugar. Sergi acordou com uma sensação que poderia ser descrita como vontade desesperada de sentir saudade. Sentir saudade. 
Mas Sergi não sabia sentir saudade. Melhor: não sabia dizer que, talvez, a inundação no peito fosse saudade. E toda aquela discussão sobre como dizer que você faz falta longe do português do professor que conheci em Viana do Castelo. 
O gelado que corria com o vento, no sentido contrário da rua larga, lançava Sergi para nós entre pessoas, tempos e espaços que, hoje, não passavam de imaginação. Ada ainda não usava batom e não tinha começado a pintar o cabelo. Cesar tinha uma coleção de livros sobre Orson Welles. Juntos, os três bebiam garrafas de cavas e tomavam sol, sem camiseta, no Vallparadis. O paraíso que habitava o nome do parque passava despercebido, mesmo quando, não declaradamente, resvalavam o braço um na pele do outro.  
Sergi pensa nisso e repete, muito discretamente, inclusive porque continua caminhando, as torções da dança muscular que inventou num bar com nome em néon. De longe, encara a estação e calcula quanto tempo tem antes de ficar à disposição da curiosidade alheia, na plataforma de embarque. Conclui, aflito, que resta só o tempo da saudade. E mesmo o peito sendo um saco sem fundo, avalia, a saudade passa.  
— ¿Qué pasa, Sergi?  cumprimenta Helena, vendo o amigo dançar. 

Saturday, July 25, 2015

Victor subiu no muro que dava para o telhado de trás, onde tinha se escondido algumas vezes para fumar. Estava garoando, não daria para acender um cigarro. Mas, se chorasse, ninguém perceberia. 
Ninguém percebeu quando Victor correu para debaixo da cama, porque tinham esquecido seu aniversário na escola. Anos depois, voltando para casa num dia de chuva, olhando a cidade, o corpo e a alma resfriada, pediu uma pizza. O entregador, molhado, não reparou que Victor estava com os olhos cheios d'água, por causa da maneira como a vida acontece, como a vida acontecia. Separou dois reais, esforçando-se para ocupar a cabeça, para desfazer o motivo de chover por dentro cada vez que chovia lá fora.  
Victor andava pensando em tanta coisa. Nos amigos que ficaram pelo caminho, na família que ficaria pelo caminho, nos lugares, nos vazios, em tudo aquilo que, apagando, lembrava a cena de De volta para o futuro, com a foto regressiva. O futuro está aí para dizer que a gente não estará.  
Desde que testou pela primeira vez, Victor precisou passar a subir, com frequência crescente, no muro que dava para o telhado de trás. 
Numa festa esquisita, num churrasco entre pessoas que mal conhecia, na fila para pegar o visto de partida, na fila no velório da tia Adriana, numa noite néon em Buenos Aires, numa noite amarelada em Sófia, olhando uma placa de rua em São Paulo, ou pagando a gorjeta da pizza. De repente, uma fragilidade cobre a pele, uma confusão turva a vista e Victor sente uma falta irreparável  das tardes em que fumava escondido, protegido das garras do mundo, da ferida da vida, contando as telhas do vizinho dos fundos. 

Friday, March 27, 2015

Enquanto o Felipe repetia que ninguém instruiu a gente para atender a frequência da delicadeza, que a vida é dura, que a vida que a gente escolheu, mas que a gente não escolheu, mas escolheu tocar adiante, não funciona de acordo com tanta coisa de que a gente precisa para funcionar bem, tomei três ou quatro goles seguidos da cerveja que eu tinha na mão. Tinha passado a semana lutando contra as luzes que refletem no vidro do ônibus, à noite; essas luzes que vomitam uma cidade indescritivelmente frágil, sem fim, sem mais promessas.
- Serveja, brinquei, quando fiquei bêbado 6 anos atrás.
O que o Felipe estava querendo dizer, ou o que eu entendi do Felipe, é que a gente entra num samba e repete o passo, mas o passo não muda o ritmo da gente a ponto de mudar as forças que, lá dentro, disputam com a selvageria que ataca daqui de fora. Selvageria que nunca é condescendente com a delicadeza. Mas, no fundo, o Felipe queria acreditar, e eu também, que todo mundo, todo, todo mundo é quebradiço, e mais delicado, quando descobre que o pai precisa pausar o tratamento de Parkinson para começar outro tratamento, ou vai morrer. Talvez morra mesmo assim.
E, de novo, olhando o reflexo da luz esverdeada pelo vidro da garrafa, pensei no dia em que cruzei um lago azul, em busca da delicadeza, ouvindo a música mais bonita de um amigo chamado Durand - mas uma cerveja nem nada duram o suficiente.

Wednesday, May 28, 2014

Estava na sala agora há pouco, quando meu telefone tremeu e vi que tinha recebido um alerta. Antes, era o telefone que tocava, quando tocava, para dizer que faz tanto, tanto tempo que a gente não se fala e por esses dias pensei em você, acredita? 
Tinha uns 6, 7 anos que não falava com o Bruno. Trabalhamos juntos lá atrás; depois, ele mudou de emprego, eu mudei de país, não sei, nunca mais. Daí, nesse meio do caminho, li Amigos que no he vuelto a ver e chorei, chorei mesmo, em mais de um dos contos. É que aquela história dos amigos que saíram da Espanha até Berlim de carro, em plenos 70, tanto sonho, que dá saudade até em quem só nasceu na década seguinte.  
21:32 E agora estou dando aula para uma rapaziada que nasceu em 95, acredita? Em 95 eu estava descobrindo o Pulp e tentando convencer os pais dos meus amigos a deixar eles irem comigo numas festas em Santa Cecília. 
Quando percebi que os boxezinhos do What's up não estavam mais dando conta dos 7 anos de silêncio, decidi ligar. E foi uma comédia ouvir o Bruno, mais rouco, meio gaguejando, porque, na verdade, ele queria mesmo era ter ligado, mas ficou sem jeito, acho; porque imagina o que é achar o telefone de alguém, depois de anos, no linkedin. 
Falamos de uma porção de coisas, de coisas que falávamos 7 anos atrás e das coisas que não falamos em 7 anos. Contou que tinha saído da casa da ex-professora, história esquisita, e que estava morando com uma namorada, e que estava feliz, e que tinham uma casa, um cachorro, e que, no final, agora entendo algumas coisas, ele disse. Estava trabalhando muito também.  
Conversa vai, vem, e ele me convida para jantar na casa deles, porque vão se casar e pensaram, faz sentido, gostaríamos que você fosse o padrinho.
Depois que desliguei, indo até a cozinha pegar uma uva, pensando que todo mundo dá um conto, que todo mundo se perde algum dia, se perde de vários outros e de alguns outros que, por algum motivo, foram mais especiais, fiz, por três vezes, um sim mecânico com a cabeça. Um gesto tão sem pensar quanto a saliva que juntou na boca, enquanto eu mastigava. Pensei que, sim, depois de todas as conversas que tivemos voltando do trabalho, no ônibus, subindo a Brigadeiro; do tanto que eu insisti, porque estava convencido de que, por maior que fosse a asneira que eu falava, falava com sinceridade; pensei que fazia sentido e me senti tão, mas muito em paz, porque aquelas conversas de bus, que nunca chegaram a ser de bar, ficaram no Bruno e ajudaram aquele sujeito, que era uma humanidade, a ser feliz.  
E fiquei só imaginando que voltaria a vê-lo mais gordo e mais feliz. 
 

Monday, May 26, 2014

Fui viajar até o Sul, pelo sul. Tomei um barco que saía da frente de um hotel turístico de Bariloche; um amigo me disse que eu deveria guardar dinheiro para passar ao menos uma noite ali. Do píer, de onde saímos, vi o hotel detrás de uma névoa, que se movimentava devagar, horizontal e verticalmente, num tempo diferente do do vento, que, lá embaixo, parecia mais forte, mais rápido. E fazia sol. 
Quando o barco começou a balançar, a tomar o lago em direção aos bosques, aquele azul imenso, difícil dizer se era o céu refletido na água, ou a água, o brilho atrapalhava a vista, ficava difícil fazer foto, porque era muita luz cruzada, impossível perseguir o rastro dos raios: só a sensação toda. 
Uma visão assombrosa. A beleza que o mundo tem; as rotas de fuga acabam sendo impraticáveis, porque a novidade do mundo desmonta a nossa segurança, tão frágil e tão dependente da certeza da rotina. Fui vendo cada dobra da água, protegendo o olho dos reflexos do sol; reparando onde a vegetação começava em cada trecho das margens; as montanhas impunham os contornos que só alguma coisa do tamanho de uma montanha é capaz de impor. O barco seguia numa velocidade média, duplicando o impacto do vento: só algumas pessoas experimentavam a área externa, por causa do frio. 
Tinha planejado fazer o passeio ouvindo a música do Federico Durand. Porque, num primeiro momento, me disse ele, era só uma melodia, que foi se desenhando conforme se corporificava e virava som. Uma melodia que chamava "travessia". E enquanto eu chorava, e o vento secava as lágrimas, via tudo tão branco, o diafragma muito aberto, dessas indigestões de quando a gente come demais, o olho maior que a boca, menino. 
Acho que quando o Eno fez "An ending" deveria estar, assim, engasgado. 

Thursday, January 09, 2014

Desculpe se eu estiver sendo invasivo; na verdade, acho que estou. Quer dizer, não sei se tem maneira de falar, com intenção de amizade, sem participar. Eu sei. Invadir e participar são coisas diferentes, e essa diferença pressupõe uma autorização, uma bandeira hasteada, alguma sinalização. Mas o que eu quero é que você entenda que a gente tem pouco tempo para evitar dizer as coisas por inteiro, inclusive se elas forem invasivas e se ser invasivo for errado. 
Mas acho, e acho mesmo, que, nisso tudo, o seu susto maior, o medo que você está sentindo, tem a ver com o fato de talvez estar se dando conta de que o mundo que te foi dado não é exatamente o mundo no qual você está se descobrindo. Tentanto filtrar de uma maneira mais certeira: você conheceu três, quatro pessoas que deram a entender que são parecidas com as pessoas que você gostaria de ter, mas que não são como as pessoas que você tem. E o "ter" aqui é totalmente figurado, você entende. 
É isso que eu percebo quando conversamos. A Lara, por exemplo, encantou você por aquilo tudo que você não tem, que não achava que precisaria ter, mas que, agora, no tumulto, está parecendo parte do mundo que você imaginou nas mil vezes em que colocava Eno para escutar.  
Quando eu tinha uns 17 anos, li Demian, do Hesse, e gravei aquela passagem do "Quem quiser nascer tem que quebrar o ovo" - mais ou menos assim. E, falando nela, me lembro de outra, do Beckett, em Esperando Godot: "esqueço na hora, ou me lembro para sempre".  
Você ainda não quebrou o ovo, e está pensa nisso o tempo todo. 

Wednesday, January 08, 2014

A gente pode achar que dura. Mas não dura. É tudo curto demais. Mesmo esticando os dedos, minha mão não dá conta de medir o mundo. Fico parado, com a mão aberta, decepcionado. Escapou. As coisas fazem falta. Estão aí, dando sopa, mas não estão nunca em mim. Às vezes, poucas, comigo. Mas não em mim. E mesmo quando volto e reencontro um lugar, uma pessoa, que perdi há anos, concluo que foi tudo imaginação. O lugar, a pessoa, a perda. Nunca tive nada. Sou curto para caberem as grandes coisas que inventei. O que eu invento já existe de um jeito diferente, grande, fora de mim. E sou sempre pouca coisa perto de cada uma delas. Insuficiente e curto demais. 
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