Sabe, existe uma coisa que tento evitar, tenho evitado, há muito tempo. Desses incidentes bobos. De tão bestas, inevitáveis. Mas achei que poderia passar a vida inteira adiando, fazendo de conta. Aliás, quando pude, fiz força para viver da imaginação. Hoje, alguém, ou alguma coisa, preferiu assim: aconteceu. Diferente. E dói no peito, arranha a garganta uma decepção. Porque elas vêm acompanhadas da sensação de que, pouco a pouco, a vida troca as infinitas possibilidades por circunstâncias repetidas e insossas: um "agora é assim". E tem leite derramado. E piada que já não produz a mesma graça. Sento num bar para beber, não mais por diversão. A cabeça precisa de respiro. O hábito ingênuo convertido em salvação. Falo da família, do trabalho, até das minhas tristezas, com o rapaz do caixa. E faço amigos por uma noite. Sem desconto. E me despeço das minhas confissões rogando por mais um copo. E são R$23. E a vida de verdade não condiz com a farra da cantina italiana de tantos anos atrás. Hoje, chegando em casa, no trajeto da volta, dentro do ônibus, debaixo de uma chuva suja e mal-humorada, apertado entre roupas suadas de trabalho, não tive maneira de evitar. Distração. Quando dei por mim, e quis escapar, a morena de cabelo pintado e caderno no colo me condenou com delicadeza e educação. Jamais seria pior. Com voz doce e sorriso ensaiado: "pode sentar", cedendo o lugar. E eu, delatado, com medo do assento marcado, da falha na voz, da fraqueza do corpo e do que o tempo me tirou, odeio gestos de respeito que disfarçam pena de mim.
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