Sentado há coisa de 20 minutos, observando a sala, tentativa frustrada, sem jeito de integrar a comemoração. Vinho servido, o copo não chegava a estar vazio. "Tem mais esse, Rafael". O zunido piorava em festas de Natal. E como. Natal foi muito feliz - antes. Enfrentar o gosto diferente de uma recordação tão doce era duro demais. A expectativa existia. Nada muito diferente da palavra "menta". Quando descobriu por primeira vez, foi numa bala esverdeada, presente do vovô. E que delícia! Natal foi assim, lembra. Quando entendeu que se repetia, chegava com presente e imensa alegria. Na casa de uma tia, morta há anos já. "Seis, sete, oito" - a decoração da sala (do Natal de hoje), apinhada de "patinhos", madeira, barro, metal e porcelana. De todos os tipos, poses e cores. A taça cheia de novo, a sede na boca, a distância. Quanta coisa partida. O sagrado, o profundo, agora num e-mail impresso, texto no formato de pinheiro, "circulou pela internet". Que bom preferir as broncas da tia Celina, numa ceia perdida em 78, "não tira o enfeite da árvore, garoto". Ah, soubessem. Quando
falta conversa, José Maria vai até o quarto e busca um e-mail novo, "esse é ótimo também, curioso como a gente pode ler de trás para frente". Que pena - só agrado, o anfitrião cheio de cuidados com a pouca intimidade entre os convidados. Rafael levantou, um pouco zonzo, sua única contribuição, ou mesmo "seu presente de Natal", haveria de ser a revelação da possibilidade de uma festa nova, longe dos moldes caquéticos do ritual que murcha com a vida em idade contada. O elogio do amor, a beleza da vida, a necessidade de fantasia, a comunhão entre seres frágeis, interdependentes e tão carentes de explicação. "Amem, senhores, o teto da casa que zela sua insistente falta de companhia, as paisagens, os amigos mais sinceros, a delicadeza das coisas que chegam do coração. Digam sim à ilusão, a todas, todas as formas de criação; às melhores músicas da vida, à melodia repartida, à poesia dedicada a ela, à prosa inundada de mundo e de paixão. Meus queridos, não percam a chance de fazer dessa noite um risco de aproximação. Vocês, meus caros, com tudo que têm, que jamais chegaram a dizer - celebrem o nascimento e a morte de vocês, e de mais ninguém. Porque o mundo não deixa de vir, queridos enferrujados. Nenhum segundo é virgem de novidade; a natureza é o milagre da multiplicação. Natal - subiu a voz, bem mais aguda -, Natal, camaradas, Natal sou eu, o que veio comigo e o que, com muita dor - e admiração -, permanecerá e duplicará sem mim." O espanto emudeceu os convidados, nona ou décima taça vazia, o vinho: depois do aquecimento de três doses de Ballentine's, a uva. O quadragésimo segundo patinho estilhaçado no chão - "era da vovó Lica", inconformada a dona da sala. Quase a segunda morte da velha. "Rafael, meu bem. Rafael, você derrubou o enfeite, querido." Assustou. Ajeitou os braços nos braços da poltrona. Estivera sentado o tempo todo. Sentado ausente da conversa, na promessa de uma reunião diferente, num nascimento fora dali.
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