Antônio sempre contou a mesada. Aos 7 anos. E depois. Mais velho, escreveu páginas e páginas, nunca chegou a ver nelas um livro completo. Imagine, são capítulos recortados. Quando conheci a Luciana - na época, namorada do Antônio -, repetiu três vezes, numa conversa de 5 minutos, "é uma pessoa especial". Tempos depois, aconteceu de a gente trabalhar juntos. Ele revisava as bulas de reumatologia. Eu, parte mais pesada, transplantes. Passamos a aproveitar o almoço para testar afinidades. Lia Michon. Eu, Vila-Matas. Tremenda coincidência descobrir que também adorava Stone Roses. Rimos pra caramba quando confessei que sempre conferia as notas da mesada, combinação de bilhetes diferentes a cada mês.
Ontem, Antônio deixou comigo uma apostila com seus textos. Na verdade, estava deixando um livro inteiro, fechado, sem querer reconhecer. Logo na primeira página, um texto sobre as listas que o irmão preparava para demonstrar atenção. "Não saia sozinho". "Vista sempre a caceta". "Prefira rock de verdade". "Ligue para a mamãe". "Use mais palavras de homem". Quatro capítulos adiante, um relato sobre Lucas e Lucía, casal de amigos, numas férias em Ushuaia. Antônio acreditava no amor. Achei uma concordância esquisita - sublinhei.
Quando a Aline saiu do banho, pedi para ler um trecho. De quem é? Não respondi nada. Só li.
Quis saber seu sobrenome. Adivinha! Paula Adivinha, brinquei. Sabe alguma coisa de mim? Arriscaria dizer que você morre de medo de se desfazer dos textos que escreve. Eu? Guarda o Jorge, Dogue Alemão da terceira séria, e até o Rodrigo, amigo irreversível, no papel. Estou certa? O Jorge era um policial. E o Rodrigo sumiu.
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