Depois, descobrir o número do sapato, a duração do disco, a essência do sabão, a extensão do risco. Sempre o mesmo desencanto por ter de fazer as coisas sem saber por quê. Rafa, veste a camisa, moleque! Chego do mesmo trabalho, alterno as mesmas quatro ou cinco músicas; não entro num trem sem agendamento, fico com medo de perder a hora, de esquecer o caminho; medo de errar a língua, de segurar o garfo na mão direita, de atualizar a caixa de entrada; olho o relógio todos os dias, não vou pensar que me mata mais rápido. No trajeto, um motorista: não entendo, rapaz. Incapaz de explicar o porquê. Digo, garoto, atenção: só não entendo como, com vida longa vivida, trabalho de 12 horas/dia, não chego para pagar a faculdade de engenharia de um filho meu. Entende? Cresci, assim; sem estudo, sou bicho. Quis, para nunca deixar de querer, doendo mesmo, que esse moleque tivesse sorte diferente. Quero ainda, sabe? Mas o pobre tem pouco salário. O país sem caráter. Se gente feito você desiste. Com gramática, álgebra e biologia, e a opção em ser boçal - não tem amigo desse jeito? Então: o problema da educação, o país dos imbecis covardes - e se perco meu emprego? Não, rapaz, veja o jeito como você fala - nunca chegou a comer por fome. Diferente é o filho de gente como eu. Vê: se nem você encontra explicação... Com tudo que tem, e teve, com toda sorte e oportunidade, descrente de tanta coisa, do mundo e das pessoas. E eu? E Marcelo? Sei: quando você fala do mesmo lugar na mesa, da caneca que você leva para o quarto, do beijo seco da namorada, duma internet com pouca opção... É tédio, amigo. Apatia e desilusão. O tempo que a gente leva, roubado por dono de nada. Meu filho, acho, agora mais conforme. Vem dizendo: se chego a ser nada, terei tido pouca opção. Ao menos.
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