— Ernesto, tive já oportunidade de dizer. Não espero por uma segunda chance. Se quisermos fazer, tem de ser agora. Os amigos, se houver, serão o abraço do tempo de cá. Veja bem, não quero, com isso, dizer que conheço o mundo que existe. O mágico, o transcendente, faz parte da imensa realidade que não alcanço. Por isso, fantasia. Quando digo “Deus não existe”, não condeno um princípio... Apenas suponho o infinito do universo simbólico que engole o homem, de modo diferente, em cada canto do mundo. Deus existe como construção. Não dorme em berço branco, com barba comprida, ciente e senhor de tudo. Ninguém, nunca, jamais, pode negar isso. Você estará lembrado de que todo o sistema nietzschiano devassa a tradição cristã, servido de outro paradigma simbólico e religioso. Nietzsche não acreditou num Dionísio físico e imperativo. Falamos de princípios, conceitos que se espalham pelo mundo, na tentativa de dar sentido a uma sede de entendimento insaciável. Não, Ernesto, não acredito numa segunda vez.
Ernesto recolheu um pouco da franja. Olhando para Víctor, pensando no mundo imprevisível que se perde dentro de cada um de nós, voltava a estudar as palavras que o jovem amigo insistia em repetir, sempre com um verbo, ou uma conjunção, que colocava em dúvida a construção da vez anterior.
— Sim, você já me falou a respeito. “Num céu de nuvens, não existe uma segunda vez”. Foi assim, não? Enfim. Nesse ponto estamos de acordo. Aliás, tenho me dado conta de que estamos cada vez mais de acordo. O que não me parece muito bom. Afinal, rapaz, o mundo encanta justamente quando se revela diferente. Fôssemos todos iguais, e me matava na primeira oportunidade.
— “Se todos fossem iguais a você, que desgraça viver...”.
Ernesto observava o amigo, encantado com a voracidade ingênua de toda juventude.
— Entendo – emendou Víctor. A diferença deve existir, claro. Mas a afinidade não deve ser entendida como uma relação de identidade. Jamais. Afinidade é uma relação de semelhança, entendida no sentido geométrico, percebe? Duas opiniões afins não se sobrepõem, se encaixam.
— E a diferença? O que seria a diferença, então?
— Princípio, Ernesto. Se o ponto de partida de um não encontra lugar no outro, a relação de semelhança é inviável. São triângulos com ângulos não-coincidentes, está lembrado? Em outras palavras: se acredito em Deus, e você, em Atena, a semelhança sempre poderá acontecer. Ou melhor: não acredito em Deus, mas chorei numa capela de Sofia, entende? Não há princípio nosso que não nos emocione. Isso faz de Sponville um admirador de Spinoza, por exemplo. Os dois não pensam igual, mas acumulam afinidades. Um é ateu, o outro se ajoelha diante da beleza de Deus e da Natureza. Sponville é capaz de elogiar Epicuro e Lucrécio, sem contradição alguma. Você sabe bem.
— Sei e gosto do raciocínio, apesar de achar falha a analogia geométrica. Sugiro o caso da relação entre quadrado e retângulo. Os ângulos são iguais, mas, geometricamente, jamais chegarão a ser semelhantes, não é isso? Um quadrado é sempre equilátero. No dia em que o retângulo quiser parecer um quadrado, terá se convertido num quadrado, sem caminho de volta. Não sei se estou sendo confuso, ou exato: matemática não é mesmo minha praia.
— Confesso que estou dobrado – riu Víctor, abandonando a improvisada teoria, callejera. Seja como for, acho que você me entendeu. Não usemos “diferença”, “coincidências”, então... Falemos apenas dos princípios. Se eles se entendem, há indício de comunhão.
— Sim, estamos de acordo outra vez. Contra minha vontade – sorriu Ernesto, em dúvida sobre o dia em que teria fim tamanha inquietação.
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