Em 2006, Renato combinou de encontrar alguns poucos amigos antes de viajar para Berlim, onde ficaria por dois anos para estudar Literatura. Dias atrás, tinha se despedido dos colegas de trabalho - e de um ou outro amigo do trabalho, que chamara para se juntar aos outros amigos que o acompanhariam numa noite misteriosa num bar chamado Munique, na República, em São Paulo.
Renato, Felipe, Fernando e Gabriel juntaram-se no metrô Brigadeiro. Sentaram ali pertinho, numa mesa de metal com quatro cadeiras. Beberam Brahma, era o que tinha. Renato não gostava, Gabriel achava mais ou menos, os outros dois não tinham opinião. Renato tinha provocado o encontro no bar, porque decidira gastar um saco de moedas acumuladas nos últimos anos. Os quatro amigos, ou os três amigos do Renato, porque não eram tão amigos assim entre si, entre 24 e 27 anos, tinham parado poucas vezes para prestar atenção a um plano de futuro. Renato estava se mudando para estudar Literatura. Os amigos e as coisas estavam mudando também. No avião, enquanto chorava essa e outras despedidas, Renato viu graça no fato de nenhum dos três amigos convocados para a noite misteriosa ser grande fã de Literatura. Os quatro adoravam música. Falaram de música até. E não se arriscaram a dançar no Munique, porque estavam falando do que andava mudando na vida, nos trabalhos, nas namoradas e nas famílias de cada um. Ando sem vontade de trepar com a Juliana. Entendo um pouco, acho que perdeu a graça. Estou indo atrás de uma argentina.
Em Berlim?
Renato tinha estado em Berlim aos 15 anos. E estudava alemão desde os 14. Tudo nesse plano era opção sua. Berlim e a Literatura. Mesmo assim, estava indo com um pouco de medo. Estava em dúvida; não sabia se estava em tempo de fazer amigo tudo de novo e, dos três ali na mesa, tinha certeza de dois irmãos tardios; de amigos que fizera depois dos 20 com a alegria das alianças que a gente só imagina possíveis antes dos 15. Renato ainda não sabia se preferia Vila-Matas ou Auster.
No Munique, beberam Original. E vodka nacional. Um pouco depois da meia-noite, tocou a música do Pulp que aparece no Trainspotting. Renato pediu um brinde. Gabriel disse "amizades", Fernando ficou quieto, e Felipe, "saudades". Os quatro só entenderiam depois, talvez no bar em que esperaram o metrô abrir, talvez na própria estação, ou no vagão, ou a caminho do prédio do Renato, quando disseram tchau. As histórias mais importantes são simples e prosaicas assim. A gente começa a trabalhar no Itaim, senta numa mesa no segundo andar, troca duas palavras no café e ganha coragem em apostas que sempre valeram muito e sempre precisaram de mais fôlego. Então, um amigo novo, sinceramente novo, diz "eu também", e o horizonte ganha uma clareza enorme porque vamos fazer juntos.
Sair para Berlim era justamente renunciar às amizades capazes de montar uma aventura grande para a vida. Mas era também dar à vida a oportunidade de montar aventuras grandes, mais prováveis de serem maiores por serem fora dali. Uma polaca num quarto conjugado de um hotel na Bulgária. Um professor da Opus Dei. A obra quase completa do Echenique. O tratado da amizade de Fred Uhlman. O risco de ser mais ou menos feliz.
Renato cumprimenta Fernando na estação Paraíso. Apertam as mãos, estão meio engasgados, mas Gabriel e Felipe garantem as piadas que tiram o gosto de o que é que vai acontecer. A porta fecha, Renato prefere correr dessas imagens e enumera algumas últimas coisas que precisa incluir na mala. Viaja na quinta-feira, a madrugada agora é de quarta, "até amanhã" aprendeu a dizer cedo, só por dizer.
Descem os três na Brigadeiro, o bar onde começaram a festa está fechado, está tudo escuro e meio lento; algumas luzes começam a trabalhar, a cidade é meio úmida numa hora dessas de setembro. Gabriel vai pegar um táxi ali mesmo; abraça o Renato e diz "mano, legal demais conhecer você." Meses depois, num bar bem próximo dali, vão falar de algumas coisas esquisitas, de pessoas que nunca conheceram e de um jeito novo de ser. Renato tem o olho molhado, já não disfarça, as coisas estão mudando mesmo.
Renato e Felipe descem dois ou três quarteirões. Estão com ideias atrapalhadas sobre as possibilidades do que fazer dali para frente, trabalharam juntos por pouco mais de ano, pareceu tanto. Renato comenta, você tem, TEM que me visitar. Felipe fala que sim, mas olha que não; numa idade em que as coisas eram para ser simples tudo fica importante e definitivo se parece remoto. Felipe foi ficando triste, poxa, quando eu voltar a ver você. Renato divide a atenção com uma sensação estranha, a amizade, das coisas grandes que a gente pode ter na vida, fica para depois. Chegam no prédio, Renato deixa o resto de Real com Felipe e agradece. Meu irmão, nada consegue ser tão misterioso como o que nunca chega a ser depois.
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