Lúcia e Rafael passaram muito tempo tentando descobrir como curar as manchas nas calandívias dos vasos que guardam no quintal. Excesso de umidade; quase um choque.
No jantar de quinta-feira à noite, pouco antes do feriado, quando já pensavam na viagem para São João da Boa Vista, custaram a entender por que Sandro e Eliana preferiram separar a casa, os livros e o telefone. Rafa comentou: "O Sandro adorava ler Drummond; e Eliana, Leminski". Eliana achou engraçado, porque Rafa falou, com familiaridade, de coisas que nunca leu. "Sei lá, os dois adoravam pizza de calabresa, lembra?". Rafa pensou imediatamente numa data, em 2006, quando os quatro pararam para comer numa rua esquisita da cidade, e, sem querer, descobriu o muito que a Lúcia sabia de Astrologia. "A Eli parece a minha mãe em diversas coisas. Diversas, não. Nas principais."
Rafael planejou mudar de carreira; no atual emprego, mesmo de 3 anos, não tinha nenhuma. Planejou e um dia, comendo salada de atum num bowl de cerâmica, comentou com a Lúcia, que mal conseguiu reagir com um "ok". Um sorriso era suficiente, mas não foi.
Ficou nervosa, incomodada, mal humorada; tinha planos para ela que dependiam dos planos que o Rafa tinha para ele.
Naquela noite, lembra bem, ficou sem fome, sem tesão. Mas decidiu comer a Lúcia para ver se terminavam mais leves, em paz. Rafa, pensando agora, reparando na cor amarronzada das folhas grudadas na terra, acha que não funcionou. "Não funcionou", fala baixo, "porque eu queria ficar bem com o que eu queria, e não exatamente com a Lu, que deixou escapar uma resistência enorme com a minha vontade de fazer alguma coisa pensando em mim."
Às vezes, o Rafa parece gente boa demais; usa palavras pouco complicadas demais. Daí, de repente, numa frase reta e imediata, descobre ("un" mais que "dis"cover) a falta de delicadeza de algumas coisas que arrebentam o mundo. Hoje, no ônibus, falou do gorro que comprou para a sobrinha, que vai nascer. Pediu para bordar "revolunciocita". "Si no puedo bailarcito, no es mi revolucioncita."
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