Coloquei o fone no ouvido um pouco antes de dar play. Na hora, não me dei conta de que todo mundo na sala estava ouvindo a mesma música que eu. O fone estava desplugado; não percebi.
Agora, estou ouvindo a mesma coisa que ouviram, sem ouvir, comigo. O ruído debaixo do Minhocão, com chuva, terminava num apito quase igual. Só as camadas de voz, acho, ficaram sem um efeito parecido.
Escuto essa música quando me lembro da Sabrina. Quando me lembro da primeira vez que comi uma jabuticaba direto do galho. Quando penso no cansaço do dia em que cheguei de Roma. Quando me lembro dos intervalos com a Mirela. Do dia em que o Joca e eu achamos que o mundo ia dar certo. Da vontade de ler livros de gente triste. Da vontade de ouvir discos do meu irmão. Do medo de deixar o Ico escapar pela porta. Morreu atropelado. Da expectativa de ouvir um sim quando pedi para ver o fim do Programa do Jô; tem mulher pelada. Da piscina num apartamento na Barra, depois, mais tarde, debaixo da chuva; a Patrícia e eu, uma punheta. Ouço essa música que parece vento quando corro de bicicleta, uma, duas voltas no quarteirão, vou deixar meu irmão ganhar, em 87. Fui ao Morumbi seis ou sete anos depois. Antes, durante e depois do gol, ouvi a mesma brisa, a mesma trilha que tocou no pênalti que o Macedo marcou; a gente aprende a ter vontade de ser campeão. Né?
Escuto essa música quando não tenho muita coisa para fazer. Ou quando tenho uma lista de pendências bobas para garantir o salário do mês que vai garantir o mundo que eu sempre adio e não vem.
Não vem.
Quando presto atenção a um avião, no céu, atravessando um fundo escuro de nuvens carregadas, quase no intervalo iluminado pelo clarão, mais escuro aqui embaixo, são quase seis. Quando arrumo as minhas malas, tão perto e tão longe do dia da chegada, e abraço as pessoas que me fizeram fissurado por saudade. Tchau, Lucía. Me escreve, Penélope. Quando você vem, Vane. Vamos escrever um livro, Cesar. E não vem.
Escutava essa música do berço em que eu via um trem subir para despencar do terraço do prédio onde eu morei. Levantar e cair. Escutava quando latia alto com o Téo, e a Fátima, que arrumava lá em casa, derrubou a dentadura no meu pão com requeijão. Quando minha tia não me olhava mais. No caminho do velório, enrolei a caixinha dos meus óculos na mão; meu irmão dirigindo, ninguém falando nada, só o vento e a música que ouvi antes de ouvir depois.
Ouvi e ainda ouço essa música no banho. Na cama. No chão. Ouço quando tenho motivo, quando tenho um sonho inteiro. Principalmente, quando entendo que demoro muito para me refazer da decepção.
Estou ouvindo agora, tem um monte de cigarra lá fora, primeira vez que estou em Tietê; meus irmãos e eu, de pijama, no quintal, no meio do mato, não vemos nada, mas as cigarras, as cigarras. Agora, muito tempo depois, estou trancado no quarto, roubaram o Téo, meu irmão está ouvindo, abre a janela, de repente, vai que o Téo ficou preso no telhado. Mas não vem.
Não vem. Mas também não sai de mim.
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