Andava tão quieto, e tão irritado - mas é assim. "É assim", tentou se conformar. "Assim", assentiu, com a cabeça baixa. As inúmeras tentativas, cercadas de frustração, e o contínuo afastamento do mundo de mentira dos outros, tão próximos, censurando expectativas acumuladas em tempo comprido. E o que foi sonhado no alto de uma roda-gigante pode ser ruim? Em tardes de domingo, numa rampa deslizada em triciclo com banco de plástico? Nos últimos tempos, vinha chateado com a impressão de gastar a beleza da música preferida no repeat do i-tunes. É que andava de mau humor. Intolerante até. Porque, na vida, meu Deus, faltava vida. E quando falara nisso por primeira vez, condenação. Própria. "Se me ouvem, me matam". Com medo do céu, estranhamente. Mas é assim. No Animal Planet, 69 da tevê, todo bicho é migrante. "Acho que posso dizer todo", mediu. E estava convencido. "Sou nômade, caramba. Meu tédio e essa insatisfação fedem cada vez que nego o movimento que é urgente em mim." E era. "Detesto estar parado. Se foi a Igreja, a família, para dividir terra e herança... Não foi por mim". Acenou novamente com a cabeça, afirmativo. "Não, meu Deus. Quero migrar. Preciso pernoitar em tocas irreconhecíveis. E ver gente, trocar de roupa, não me comunicar, se for". Isso, que tão claro. E toda essa nhaca, esse desgosto, a detecção do que a falta tem de mais terrível: carne mortificada num corpo vivo. Fungos e micróbios curtindo o repouso eterno de uma siesta moribunda. "Vou sair. S a i r", silabicamente. Chegar alguém de longe, ou simplesmente pinçar, dentre os cds, a passagem para Oslo, que um eco sufocado repete o mesmo "não sou daqui". A tara e a língua, contingenciais. Provisoriamente. Então, de novo, o questionamento da coragem. A decisão de não parar, até cair no meio do caminho, que não é caminho, por não ter aonde levar, cansado. "Sou nômade, Isabel. Errante, vagabundo. O que você quiser. Mas se puder, e suportar, aceito você comigo na viagem infinita. Prometo protegê-la de tudo, e de qualquer coisa, se também você me aceitar tendo em vista essa única condição: admitir o desnível de cada terreno torto".
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