O último presente de Natal
(O Natal de 86, boa lembrança, o último Natal de verdade. Tia Nélida era viva ainda, e só existem algumas poucas pessoas capazes de celebrar, com cores convincentes, o infinito que é nossa imaginação.)
A árvore armada na sala principal, visitada após o caminho trilhado na ladeira, com o portão de entrada deixado para muito longe, reúne pequenos enfeites e outras bolinhas necessárias ao mundo da fantasia exigente. Já treinado em três ou quatro anos anteriores, Rafael corre todo o pátio e, como noutro mundo, perde as horas diante do pinheiro comprido, convertido em relicário de sonhos e galhos de mentira. Para enxergar melhor, ajeita os óculos de acrílico, enormes nos olhos tamanho P. Ao pé da árvore, amontoam-se bonitas pilhas de presentes, às vezes grudados, pouca é a qualidade das etiquetas que batizam cada um. Em seguida, sai a cumprimentar a bisa, as outras tias, os tios menos conhecidos, as criadas de plantão, os primos maiores e, finalmente, os primos de mesma idade, parceiros nos jogos e nas brincadeiras das férias de janeiro
Ainda são crianças, as festas começam na boca da noite, junto do entardecer. No pequeno vitral das janelinhas, suspensas ao lado da porta principal, o sol brilha nas sete cores do arco-íris. Os retrovisores dos carros estacionados devolvem luz em todas as direções; às vezes, trocando bola, a criançadinha tem que proteger os olhos, porque senão a gente perde o jogo. Cuidado com os antúrios, repreende tia Anunciata. Grandes e variados, em vasos com motivos feios, de concreto pintado em branco, atravessam o caminho das bolas mais urgentes. Depois, quando estão todos enturmados, e a conversa salta o portão da frente, param tudo para três ou quatro fotografias. Uma delas guarda um pouco desse tesouro no álbum de 86 de sua mãe. Ele e os primos, em trenzinho, por ordem de nascimento. Chega a pensar, cheio de morbidez, se a lógica da vida ditará a arrumação da morte. Tem certeza, não sabe explicar por quê, certeza de que não.
A comida e a diversão são gostosas. Invejáveis, corrigirá mais tarde, quando as comemorações perderão o sabor. Com os anos, perceberá que as festas, motivos de confraternização que devem ser, tornam-se, vez ou outra, razão para discórdia. E não serão poucas nem pequenas. Chegará o Natal em que tio João e tia Lígia não podem encomendar presentes ao Papai Noel; três crianças ficarão bastante zangadas, difícil entender um ano menos generoso que o anterior. Noutra ocasião, encenam o nascimento do menino Jesus, sob forte discussão: na família há quem acredite em ritos e deuses diferentes. Um terceiro episódio, com direito a lágrimas sentidas, girará em torno da falta de consenso sobre melhor lugar para a ceia. Coisas bobas, as pessoas crescem e trocam a fantasia por um cotidiano medroso e igual.
Nesse ano, avisaram, virá Papai Noel. Talvez por isso estejam todos agitados. A ansiedade atrapalha os gols. A expectativa vira refrigerante derramado. Todos os cantinhos mais vazios continuam sem ninguém, por receio daquele velhinho que, sejamos sinceros, é um estranho. Na hora do esconde-esconde, ninguém quer ir ao porão, e se ele chegar por lá. É assim que fala Ledo, com um copo de uísque, o terceiro, nas mãos. A certa altura, Rafael é chamado de lado, convide a Silvinha para brincar. Priminha distante, filha de um tio próximo, mas de cerimônias, efeito da falta de intimidade que impõem os quilômetros da viagem até Campinas. Alcança o banquinho do piano e convida Silvinha a conhecer Napoleão, pastor da casa, preso no quintal da cozinha. A tia Preciosa e o Chico estão estacionando agora, um pouco atrasados. Cuidado com a bola no fusca (azul celeste, 56) do Francisco, volta a censurar Anunciata, cujas receitas de pizza e suspiro valem o comentário fora de lugar.
Opa, é confusão: Napoleão, durante a visita de Silvinha e Rafael, escapa da solitária. Enquanto saem pela porta, o policial, com o rabo abanando, ladrando, num pedido de "fiquem, por favor", é rápido, enfia a cabeça pela fresta e invade a noite de Natal. Algumas tias gritam; Anunciata diz cazzo. Napoleão corre assustado, enruga os tapetes e deixa um rastro de pelos claros nos tacos do chão. Na mesinha central, rouba uma empada de palmito, capricho que lhe valerá um dos mais rígidos castigos de toda sua vida de cão. É colocado no escuro da garagem, apertado e com pouco ar. Rafael protesta, a culpa é da Silvinha. Napoleão tem poucos e péssimos modos, tem de aprender. É com "de uma vez por toda" que Carla, priminha caçula, moradora do menor quarto da casa, apóia a sentença
Lá fora, Ana e Renato caçam ratos no jardim. Defendem-se com duas espadas modelo Lion-O, o herói de Thunder Cats. Um de cada vez, cutucam os buracos na terra, afundam a arma até onde conseguem. O outro permanece atento, em diligência, com um golpe na manga. Sai alguma coisa, é pancada! Malu vem pedir detalhes da brincadeira e percebe que não se trata de passatempo para uma festa especial. Ana, minha filha, vamos lá pra dentro, está quase na hora de abrir os presentes. Renatinho fica ainda por uns longos minutos, tamanha é a certeza de que verá uma ratazana. Depois, cansado de esperar por bicho nenhum, desistirá; desanimado, sentará com as crianças que dirigem o fusquinha do tio Chico. Tocarão a buzina até alguém berrar "chega!"
Paulo César, Ledo e Maurinho falam sobre coisas chatas na mesa de jantar. Conversam de trabalho o tempo todo. Mauro, lembra o Rogério da Módulo? Pois é, rapaz, tá com a gente, têm três meses já. Não teria tanta certeza, afinal, em ano de eleições, ninguém injeta grana nisso. "Ô, pai, deixa de papo furado, vem jogar com a gente!", as palavras que cortam o lero-lero. As mulheres, depois de arrumada a mesa e guardada a comida, tem que ser no freezer, estão reunidas na sala de estar. Entre o cheiro forte do cigarro e o Poison exagerado, só pode ser a Bete. Está proibido falar dos problemas; alguma ou outra observação, entre duas mais chegadas, fica para depois, em poltronas reservadas.
Sininho tocando, melodia improvisada, pedindo caminho. Os adultos calam, um diz "parece ser o velhinho"; as crianças encolhem, menores, enorme é a tensão. Napoleão, longe, no castigo, sente alguma coisa, porque o latido sobe o tom, agudo, percorre a casa, quase uivo de lobo errante, cerrado vazio. Anunciata deixa escapar um "finalmente", que é recebido por diversos olhares de reprovação. Vem lá de longe; logo, mais de perto. Rafinha, entre "vou" e "espero", vê outra vez a árvore de Natal, repara que os soldados de madeira, sem ninguém para puxar o cordão, seguem dormidos, numa noite de promessas e alegria. No reflexo de uma das bolas, perscruta o rosto caçula, choroso, de Carlinha. A melodia destrambelhada ganha volume; "aí vem ele", grita Ledo, no sétimo copo, e a gurizada, abandonada a primeira insegurança, corre para o pátio, derruba um resto de nozes e de cascas partidas. Anunciata evita reeditar a palavra mal-educada. Vejam, vejam, está ali, na rampa, vindo do portão, ou do porão, informam. Mãe, quero ver. Corre, vamos. Estão todos cercando o bom velhinho, estudando seus traços, a roupa, a longa barba, o saco de presentes. Olhem, tem um que está pra fora, o embrulho um pouco rasgado. Papai Noel, Papai Noel, diz Silvinha, baixinho, com receio de atrapalhar a vontade de todo mundo. Devagar, alerta Lígia, assim ninguém ganha presente. O santo tem dificuldade para abrir passagem, pede licença, um pouco de silêncio, ameaça perder a paciência. Vamos, vamos, os presentes. De repente, as crianças encontram um mesmo ritmo e, em coro, pre-sen-tes, pre-sen-tes, pre-sen-tes! Papai Noel desiste do caminho; cansado, decide esvaziar o saco no quintal mesmo. O meu primeiro, em ordem alfabética! Cada um tem sua exigência, porque todos têm ansiedade e é sempre maior que a do outro. Papai Noel entrega o presente de embrulho furado - um cavalo-de-pau! A agitação aumenta, nenhum pequeno vê outro brinquedo que seja tão grande. Quero o meu, quero o meu. Todos querem os seus, e a coisa caminha bem, não fosse, agora, o detalhe de onde Rafinha não tira os olhos. Vejam, vejam, a barba está caindo. Oh, algum adulto diz que não, quem é o próximo. Os fios brancos vão cedendo, Papai Noel sua cada vez mais. E o gorro vermelho também sai do lugar; Rafael pode identificar cabelos escuros, sabe que não jogam com as sobrancelhas grossas e envelhecidas do rosto rosado, de blush. O coração aperta, conclui que está desconfiado, desconfiando; reconhece muito jeito familiar naquele impostor. É a tia Marli, é; é, sim! E denuncia em voz alta, desesperado. A tia, a tia Marli! Malu procura disfarçar, distrai as outras crianças; não é nada, não. Mas Rafael está impossível, magoado e convencido, estica a barba do velhinho, repete "é falsa" três vezes seguidas; diz que não pode ser, é tudo uma mentira. Papai Noel mostra-se desconfortável; as outras crianças dividem-se entre os presentes e uma boa explicação. Estão todos apreensivos, Rafinha multiplica as acusações; chega Paulo César, Nena oferece musse com raspa de limão, vamos lá pra dentro. Papai Noel está disposto a continuar quando descobre que o rapazinho não arredará. Pensa rápido, é dele a responsabilidade de salvar a fantasia, manter as coisas como estavam até então. O pátio, iluminado, as "lampadinhas", acesas, piscam coloridas e disfarçam a noite que vai escurecendo. Lá de dentro, vem um copo com água e açúcar, que Rafinha recusa, quando o bom velhinho não resiste a um gole. Vamos, pode tirar tudo, a gente sabe quem você é. Orgulhoso, Papai Noel vê no menino um pequeno desafiador, mas uma criança fácil de dobrar. Com um passo adiante, e o sorriso de quem blefa no pôquer calhorda, anuncia:
— Pois o garotinho aqui diz que não sou Papai Noel.
As crianças, imóveis, aguardam, com o coração na mão.
— Então, lanço um desafio.
Os pequenos voltam a sorrir, a confiança no bom velhinho dá sinais de recuperar o fôlego. De-sa-fi-o, de-sa-fi-o, de-sa-fi-o! – todos repetem a palavra que porá Rafinha a descansar com Napoleão.
— Desafio este pequeno jovenzinho – nesse instante, falha a voz –, jovenzinho, repito, a pedir por um presente que o Papai Noel aqui não possa dar.
As crianças estão histéricas. O Playmobil de circo, o avião do Comandos em Ação, o míni buggy do posto da Giovanni, um balão, a coleção com as fitas dos Ursinhos Carinhosos, um autorama, ou o jipe de controle remoto. O presente impossível, cada um tem o seu. É a aparição do gênio e o desejo de testar a lâmpada mágica.
— Mas lembro que não está aqui. Tenho de mandar trazer. E prometo, e é promessa de Papai Noel, a viagem é longa, mas chegará, que seja na semana que vem.
Os adultos estão reunidos, alguns riem, porque é Natal, o leitor sabe o peso que tem. Há, no entanto, quem não veja com bons olhos, texto arriscado e arrogante. A criança vai crescer mimada; algum dia tem de ser. Teimosia esse segredo.
— Então, rapazinho, sabe o que vai pedir?
Rafael parece incomodado. É aproveitar a oportunidade e dormir com o brinquedo mais sonhado, ou sonhar tranqüilo por não ter barganhado a própria convicção. A voz é trêmula, o silêncio parece maior, o ladrido de Napoleão toca a espinha da platéia. As crianças enfrentam o olhar titubeante do desafiado; a verdade é que estão todos pela vitória do velhinho generoso. Olhando de perto, veriam os olhos de Rafinha, aguados, entre lágrimas de vergonha e a tristeza da decepção. Se pudessem olhar de dentro – e enxergar aqui fora tudo o que Rafinha está vendo –, sentiriam pena e aliviariam a inquisição. Mas, de repente, Rafael, profetizando o dia em que ouvirá do próprio pai "você cresceu, filhão", muda a direção do pensamento e, numa mistura de olhar fixo com atenção em lugar nenhum, diz ter pronta sua decisão.
— Posso pedir? – a festa depende de uma réplica assertiva e imediata.
Papai Noel demora em confirmar, não há saída: sua existência está em jogo, e só a promessa cumprida pode preservar a crença num trenó Fiat Mille.
— Está bem – e atropela os olhos claros de tia Marli. Você diz que é Papai Noel. E que, portanto, pode fabricar todos os presentes impossíveis. Então, sei bem o que quero, mesmo sem saber o preço que tem.
Rafael toma o tempo de umas reticências e sentencia:
— Quero a garantia de que vou ser feliz.
Papai Noel balança o saco, está vazio. As crianças aguardam resposta que não há. Tia Marli pergunta pelo banheiro, não se sente bem.
(À Luiza)
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