Saturday, May 05, 2007


- Prefiro a meia luz.

O tempo passa por cima da gente. Algumas situações, rápidas e imprevisíveis, abandonam o sentido antes mesmo de cobrar algum. No dia anterior, na feira, que duro passar as horas contando camarões. Agora, deitado, existe alguma coisa que não venço. Um aperto no peito, uma fuga de intenção, uma causa pouco conhecida, um espinho que, picando, explica; é o que é.

- Você já repetiu isso das outras vezes.
- E, pelo jeito, você não entendeu.

Fernanda correu e apagou a luz. Cobriu um pouco o corpo. Estava envergonhada.

- De repente, você mudou. Aliás, você muda, assim, de repente. Sempre.
- Escuta: algumas coisas tomam tempo da gente. Entender é um verbo desses. O relacionamento, uma abstração dessas.
- Você tem me agredido, acho. Não sei. No começo, nas primeiras vezes, era diferente.
- Que bom: se a segunda tivesse sido igual, não haveria a terceira... Nem esta, então.
- Você me confunde. Confundiu inteira. Ando estranha. Mal sei dizer o que quero. Admiro você, acho que amo, mas estou machucada.
- Decepção, talvez.
- É que... Bem, o jeito como você fala, a sua experiência. As palavras bagunçam o efeito de qualquer toque. E você fala bem demais. Seduz com tanta cultura. Mas, não sei, esconde alguma coisa.
- Fernanda, o diálogo não constrói uma vida conjugal. Poucas palavras diminuem as chances de desilusão. Falemos menos, pequena.
- Menos.
- Meu melhor cachorro foi também o maior de todos eles. Quando saía na rua, me sentia protegido.
- Por que isso? Você insiste num pensamento não-linear. Não precisa: basta dizer que não quer mais, que está cansado da mesma conversa.
- E não foi o que eu fiz? Sou incapaz de lembrar minha vida na ordem em que ela aconteceu.
- Você me acha uma criança.
- Você é minha aluna.
- Não, pare com isso. Quando interessa, eu sirvo de mulher.
- O que mais chama sua atenção quando uma voz desafina?
- Não sei. Algum motivo para a pergunta?
- Você desafinou agora há pouco.
- O que você enxerga em mim?
- Uma menina, doze anos mais nova que eu.
- Víctor... Quanto importam esses doze anos?
- Um dia: tempo demais para uma vida nova; de menos para os resíduos de toda uma vida velha. Um personagem meu disse isso.
- Você disse, você quer dizer.
- 12 x 360 dias. Muita vida para nos tornar incompatíveis.
- Você vai morrer sozinho.
- Não nasci com outra intenção.
- Qual é o problema entre a gente?
- Enquanto estou aqui, com você; enquanto toco o seu lábio e sinto você descobrindo o mundo, me lembro de uma igreja escura na qual rezei em Plymouth.
- E o que isso tem a ver comigo?
- O mundo, menina: de tamanhos diferentes.
- Acho que entendi. Fique tranqüilo, não serei fronteira na vida de ninguém.
- Não é você, Nanda. Também não é nada tão sério.

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