- Porque eu quero arte, e você, bem, você sempre foi, sendo cada vez mais; seu projeto é dinheiro. Está bem, ou bom, enfim; sem a prata, faço pouco. E de pensar, então, que, com tanto ouro, você não fez nada.
Decidiu: quando um mudo diz alguma coisa, o sol escurece, intranqüilo. Porque o paraíso dos covardes é sempre previsível. Assobiou uma música triste, a mais doída que lembrava, pensando no tom agudo do sopro de quem cantou alguma vez. Estava esfriando. Sempre está, corrigiu o pensamento, com medo de esquecê-lo novamente e, despreparado, cair no próximo capítulo. Com dúvida, refez a tese de que. Não sou mais gelo derretendo em água cálida; não sou. O sonho que desmantelou porque a vida tem regras, e o mundo condena a exceção. Não sou, porque o sentido vem na contramão. Nasci morno e esfriei, o tempo todo. Que pena, sentiu. Chorou a primeira vez, quando - imaginou - "sou gelo, de tão frio; a morte é meu ponto de fusão". Ai, que saudade - saudade do medo de, líquido, perder contorno, ser tudo o que todo mundo é, sem medo do confronto, senhor fajuto da solidão. Pouco importa: morro igual a todo mundo, embora sozinho no Império da Condensação. Cada vez mais teso, em dias duros, de muito pouco movimento. Um dia, quando sonhar longe daqui, vou pedir para ser oceano outra vez. Nas tardes em que foi de lá, pensando nos declínios daqui; quando uma flor mudou de nome, quando comeu a buceta mais rosada da sua vida. Não estava convencido: fosse gelo de novo, ou água parada, a vida insinuava todo tipo de frustração. Abandonou o tormento, enfrentou o pai pela segunda vez:
- Incomoda, eu sei. Quando falo, sem limite; fizeram susto de mim. Não é por ofensa, mas não deu certo; seu fardo é ter certeza disso, até mais que eu. Reconheço sua tentativa, inclusive por ser ela comum, quase a de todo mundo. Vejo o mérito em você: jamais saberia virar a mesa do jogo. Fracassado um dia, terá sempre vencido alguma vez. O truque funciona; você não é o único com fome de predador.
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