Daniel tinha o costume, hábito mesmo: olhar as paredes de cada cômodo da casa. Antes de tudo. A foto da namorada, uma gravura do Dalí encartada na revista semanal, São Paulo bicampeão, as latinhas de cerveja, o pôster da Playboy, a turnê do Depeche Mode ou uma fotografia do Museum für Moderne Kunst, em Frankfurt. Para cada família, um detalhe que chama a atenção para fora do conjunto médio. No pôster, o medo, a devoção, o lugar de passagem, a liberdade ou a perversão. É o que é, em cada um. "Em nós", pensava, conforme invadia e pisava num quarto novo. Longe, em países diferentes, uma composição roubada de janelas e portas entreabertas: "a gente tem que entrar na casa comum". Nesse caminho até a biblioteca do pai da Bia, advogado, de volta ao dia em que massageou a barriga, suada, no carro de uma colega de trabalho. "Não, não, pode parar aqui, tenho que almoçar no shopping mesmo". Correndo para o banheiro, desidratado. Ou o tempo em que escrevia frases em inglês. Por qualquer motivo. "Me definir num fotolog, numa página do livro de literatura espanhola". Que cretinice, caramba. Dizer o que eu sou numa língua que não é minha. E diz? Se perguntava tanto, tanto. É porque dizia, concluiu. Medo de falar em mim, puxo estilo, noutro idioma, e demonstro minha insegurança, soubesse. Num quadro azul, no mesmo corredor da casa, viu a praia do Leblon, cada vez que faz a curva, ó, o mar do Rio, meu tio, o sorriso no rosto, tem sorvete para todo mundo, espírito quebrando copo de cristal na varanda do apartamento. "Ai". A vida fica bagunçada, opa. Bagunçada. A cumplicidade na falação do trabalho, o que eu vou ser quando crescer (e acreditava que escolheria), a usura, o trio mesquinho na sede de dois trocados, o acidente no braço, a aula de Kant em Filosofia II, a porta da USP alguns anos depois - entro? Hein? Depois de tanto tempo, deve ser só amizade, la buena vida, los mejores momentos. Ai. Essa mania de encarar o pôster na parede, esse labirinto de tudo que transpira ficção. Não, muito pior quando um irmão detesta a arte que me diz mais - dói menos a rivalidade do gosto pela mesma mulher. Eita, Sponville, você grudou em mim.
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