Tuesday, October 09, 2007


Sábado, dia bem curioso. Fiquei sozinho em casa. Sem Débora nem ninguém. Na noite anterior, o Betinho falara do conto do Borges. Tinha lido uma, duas vezes, três, quatro anos antes. Não lembrava bem; alguns detalhes, imagino, escapam com o tempo. Ouvindo o título, ao telefone, dobrou a atenção. Quando criança, Beto dizia, eu fazia. E o comentário sobre o conto, com alguma devoção, agravamento do exagero comum às suas histórias, assustou. Em mim, funcionou sempre desse modo: o medo chega antes e afirma uma coragem que não sei minha. Convencido da casa vazia, direto ao sótão. Os primos se juntavam e inventavam as brincadeiras no porta-retratos de 86. Hoje eu procurava a alegria sozinho. O corredor escuro, cheio de livros e revistas velhas, dava no quarto dos empregados. Sempre soube disso. Tomei a almofada do sofá xadrez e desbotado. Imaginei um ângulo, qual o caminho do mundo? Aleph. Pensei num conto meu. E nos mariscos fechados. O medo e a coragem. Testados. Aleph. Urgência e ansiedade foram, sendo ainda, coisas minhas. Sei bem. Ajeitei o tapete, apoiei a almofada. Entre deitar ou desistir, um copo d’água. A cozinha teve sempre o cheiro das receitas da mamãe. E dava sede. O copo, o gelo. Desci as escadas, de volta ao conto. Do Borges. O Beto falando da tia, das nuvens carregadas, de um castelo lituano, de uma sombra dourada, da neve em Bratslava. E eu? Aleph. Deitei. Apoiei a cabeça. Fechei os olhos, como no conto. Do Borges. Um frio na barriga. Tempo certo para fisgar o mundo? Tive medo de mantê-los fechados por tempo demais. Ou de menos. A noite anterior, talvez a única chance que me permitiria. Em anos. Ou por toda a vida. E me abri, à força. Como num conto. Meu conto. E vi o mundo. Vi mais ainda. Euforicamente. Vi o mundo, sem conjugação de tempo. Impressionava muito mais que a ausência de espaço. Perder-se no Aleph foi encarar dimensões do universo, tropeçando, sem antes nem depois. Visitar o mundo sem pausa. Não houve agora nem ainda não. 276 a.C. e o século XXIII. Duas, três palavras. Uma dose de whiskey com Kerouac. Françoise Hardy e um aperto de mãos. O meu “adeus” no Panamá. E chorei. Alto. Não tinha como trazer tudo dali. A condenação de ser infinitamente sozinho, e para sempre, em toda forma do depois. Tudo abandonado. Com dor. Vi o mundo, sem tempo. Vi de perto, e de dentro, a pequena brincadeira das duas crianças flagradas, no Parque D. Pedro II, na fotografia que vi, hoje à tarde, na parede da galeria do centro da cidade.
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