Thursday, July 27, 2006


Começou devagarinho, jeito que doía mais. Sabendo que era para esquecer, que fosse tudo de uma vez, porque, aos poucos, assim, dava tempo de machucar. Jamais me lembraria das coisas. Esquecer era para ser agora e para sempre, porque, feito conta-gotas, desesperava, tirava de mim aquilo que eu era e estava sendo. Ainda. Doutor, por Deus, doutor, há cura? Não sei, meu filho. Poucas vezes vi caso como o teu. Assim, intenso, mas lento; inteiro, mas em partes. Não, não, acho que não tem cura, não. Esquecer ajuda a sobreviver, concluiu. Mas, não, não poderia ser. Minhas lembranças, nada mais, justificavam a permanência. Era porque eu tinha vivido, e as coisas lutavam para seguir vivas em mim, que haveria de continuar. Abri a porta. Disse "até nunca mais, vou perder o endereço". Então, tal qual o mestre que blefa no pôquer mais calhorda, desvendou o truque para o jogo bom: "Não te preocupes. Tua enfermidade é tal que, dentro de alguns anos, tampouco lembrarás que havia o que esquecer."

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