Trecho de um conto que estou escrevendo ("O caça-pombas"), ainda por terminar:
O grande plano, trancar uma pomba, ou um pássaro qualquer, num caixote de madeira roubado da feira do bairro, tinha traços dessa lição aprendida com gente crescida. Pais, tios e avós, atormentados com a renúncia da própria vontade, dobram-se sobre esses pequenos incessantes, sempre em nome da boa-educação, para economizar-lhes a alegria de bolar o próprio sonho. Assim, nos anos seguintes, Vítor entraria para a escola, escreveria linhas e linhas de caligrafia, ingressaria também na escola de línguas, no clube, no conservatório; depois, mais tarde, já convertido, mas à sombra da primeira imaginação, o rapaz estaria cercado pelos muros da universidade, do escritório, de casa e da nova família. Incrivelmente, essa inveja do vaivém alheio brota cedo, talvez entre a grade do berço, ou naquele cercado de rede onde a gente aprende, desde bem molequinho, a lidar com os brinquedos possíveis. Vítor, sabido-você, tinha já se iniciado na arte de fazer a liberdade dos outros menor que a nossa. No quintal, com um copo de cola Tenaz em mãos, saía à procura daquelas formigas-pretas-e-grandes-que-ficam-no-canteiro-da-frente. Ahh, como ele gostava de caçar as formigas e espreitar, por minutos, às vezes por horas, o pobre inseto esgotar seus movimentos patinando no creme pegajoso. Depois, no dia seguinte, quando, mágica!, a cola perdia o branco e ficava transparente, Vítor ficava especulando sobre o que estaria pensando a formiguinha. Na verdade – e precisamos aqui absolvê-lo -, Vítor não tinha todo esse entendimento sobre liberdade tolhida. É certo também que, voluntariamente, ninguém tem, nem os mais velhos; mas Vítor, sonhador acidental, vira na televisão um filme sobre pessoas-que-congelam-para-acordar-no-futuro. O experimento com a cola era, em primeira instância, uma reprodução não muito bem sucedida dessa técnica; a maldade mesmo só acumularia com tempo.
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