Cortázar foi mesmo escritor sortudo. É incrível como acertou a mão nos textos que escreveu. Esse que segue logo mais é uma tradução minha (liiiiivre) para a abertura de Historias de cronopios y de famas. No livro, Cortázar percorre, cheio de ironia, o rotineiro. Encontramos “instruções para subir escadas”, “acertar o relógio”, “entender pinturas famosas” etc. Sempre um olhar inesperado sobre coisas já vistas. Nessa introduçãozinha fantástica, que não leva título, ameaça uma esperança possível, mas, com inteligência abrupta, logo se rende ao des-espero (filosofia do nada-esperar) de Sponville. Fodido!
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A tarefa de amaciar tijolos todos os dias, a tarefa de abrir passagem pela massa pegajosa que se proclama mundo; cada manhã, topar com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação vira-latas de estar tudo no seu devido lugar: a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos, o mesmo sabor da mesma pasta de dente, a mesma tristeza das casas da frente, do sujo da placa com o letreiro “Hotel Belgique”.
Meter a cabeça, como um touro entediado, contra a massa, no centro da qual tomamos café com leite e abrimos o jornal para saber o que aconteceu em qualquer um dos cantos do ladrilho de cristal. Deixar que o ato delicado de girar a trava, esse ato pelo qual tudo poderia ser diferente, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo cotidiano. Um beijo, querida. Tenha um bom dia.
Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latido de metal, sua advertência desconfiada. Como machuca negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lustra até deixar com uma suavidade tolerável. Tão mais fácil aceitar a presteza da colher, usá-la para mexer o café.
E não que seja ruim topar com as coisas todos os dias e que sejam sempre as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio, e que o romance aberto sobre a mesa comece a andar outra vez na bicicleta das nossas lentes - por que estaria mal? Mas, como um touro triste, é necessário abaixar a cabeça, do centro do ladrilho de cristal empurrar para fora, para outro tão perto da gente, inacessível como a trava tão próxima do touro. Castigar os olhos olhando para isso que anda pelo céu e que aceita tão timidamente o nome de nuvem, a réplica que fica catalogada na memória. Não acredite que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que daria? Somente virá o que você já tem preparado e resolvido, o triste reflexo da sua esperança, esse macaco que se coça sobre uma mesa e treme de frio. Quebre a cabeça do macaco, atravesse o centro da parede e abra caminho! Oh, como cantam no apartamento de cima. Existe um vizinho no andar de cima, com outras pessoas! Existe ali um apartamento onde vivem pessoas que não suspeitam dos vizinhos de baixo, porque estamos todos cegados pelo ladrilho de cristal. E se, de repente, uma mariposa pousa na ponta de um lápis e brilha como um fogo cheio de cinzas, veja, eu estou vendo, estou tocando seu coração pequenininho, e posso ouvi-la; essa mariposa ressoa nos ladrilhos congelados. Nem tudo está perdido! Quando abrir a porta e alcançar a escada, saberei que, mais abaixo, começa a rua, não o modelo de rua encomendada, não as casas já conhecidas, não o hotel da frente; a rua, a viva floresta onde cada instante pode cair sobre mim como uma magnólia, onde todos os rostos vão nascer no exato momento em que os observar. Quando avançar um pouco mais, e a nova rua romper os cotovelos, as sobrancelhas e as unhas, refazendo o ladrilho de cristal, será quando, jogando minha vida, avanço, passo a passo, para comprar o jornal na banca da esquina.
A tarefa de amaciar tijolos todos os dias, a tarefa de abrir passagem pela massa pegajosa que se proclama mundo; cada manhã, topar com o paralelepípedo de nome repugnante, com a satisfação vira-latas de estar tudo no seu devido lugar: a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos, o mesmo sabor da mesma pasta de dente, a mesma tristeza das casas da frente, do sujo da placa com o letreiro “Hotel Belgique”.
Meter a cabeça, como um touro entediado, contra a massa, no centro da qual tomamos café com leite e abrimos o jornal para saber o que aconteceu em qualquer um dos cantos do ladrilho de cristal. Deixar que o ato delicado de girar a trava, esse ato pelo qual tudo poderia ser diferente, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo cotidiano. Um beijo, querida. Tenha um bom dia.
Apertar uma colherinha entre os dedos e sentir seu latido de metal, sua advertência desconfiada. Como machuca negar uma colherinha, negar uma porta, negar tudo o que o hábito lustra até deixar com uma suavidade tolerável. Tão mais fácil aceitar a presteza da colher, usá-la para mexer o café.
E não que seja ruim topar com as coisas todos os dias e que sejam sempre as mesmas. Que a nosso lado esteja a mesma mulher, o mesmo relógio, e que o romance aberto sobre a mesa comece a andar outra vez na bicicleta das nossas lentes - por que estaria mal? Mas, como um touro triste, é necessário abaixar a cabeça, do centro do ladrilho de cristal empurrar para fora, para outro tão perto da gente, inacessível como a trava tão próxima do touro. Castigar os olhos olhando para isso que anda pelo céu e que aceita tão timidamente o nome de nuvem, a réplica que fica catalogada na memória. Não acredite que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que daria? Somente virá o que você já tem preparado e resolvido, o triste reflexo da sua esperança, esse macaco que se coça sobre uma mesa e treme de frio. Quebre a cabeça do macaco, atravesse o centro da parede e abra caminho! Oh, como cantam no apartamento de cima. Existe um vizinho no andar de cima, com outras pessoas! Existe ali um apartamento onde vivem pessoas que não suspeitam dos vizinhos de baixo, porque estamos todos cegados pelo ladrilho de cristal. E se, de repente, uma mariposa pousa na ponta de um lápis e brilha como um fogo cheio de cinzas, veja, eu estou vendo, estou tocando seu coração pequenininho, e posso ouvi-la; essa mariposa ressoa nos ladrilhos congelados. Nem tudo está perdido! Quando abrir a porta e alcançar a escada, saberei que, mais abaixo, começa a rua, não o modelo de rua encomendada, não as casas já conhecidas, não o hotel da frente; a rua, a viva floresta onde cada instante pode cair sobre mim como uma magnólia, onde todos os rostos vão nascer no exato momento em que os observar. Quando avançar um pouco mais, e a nova rua romper os cotovelos, as sobrancelhas e as unhas, refazendo o ladrilho de cristal, será quando, jogando minha vida, avanço, passo a passo, para comprar o jornal na banca da esquina.
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