Andando numa rua vazia do Upper West Side, quase no Harlem, Antônio, que viu muita série policial na televisão, pensa "é bom cobrir o pescoço e andar com as mãos no bolso". A melhor defesa é o segredo, escreveu num desenho seu. A gente conta nada, quando conta muito - já viu. E sobe o zíper do casaco, para ficar guardado.
Em maio, o vento ainda é frio. Uma roda de encapuzados ouve rap; Antônio tem três ou quatro discos em casa. Nunca gostou exatamente, mas precisou ter e ouvir para se sentir à vontade de dizer que não gosta exatamente. Antônio, por causa do ar gelado, pensa na música que gosta. Pensa em Juan Stewart. Num vinil do Sinatra. Ou no tilintar das colheres no prato de sopa, capeletti in brodo, lá em casa.
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Júlio pede licença para inaugurar o pudim. É o jeito de filho mais velho, de quem pede a palavra em tom de brincadeira, de quem se acostumou a sair na frente, dizendo logo, para ninguém dizer - caramba - alguma coisa que machuca, depois. Estão todos na mesa. Júlio, Antônio, os pais, as namoradas. Antônio anda quieto: morou nessa cozinha e teve um cachorro no quintal de trás. Entrou e saiu. Mas não esqueceu, não esquece de trazer o azeite, filho. Mesmo quando tomava sopa sozinho, à noite, sabia que estava com o irmão, com o pai e com a mãe.
Agora, Júlio pede licença, o pudim está uma beleza, a vida tem sido bonita, que saudade vocês me dão. Júlio arranca para o primeiro pedaço, faca e colher na mão, a cobertura é de açúcar caramelizado, o fogo que nunca faltou, o maior sentido de tudo que pode ser amor e que a gente viveu assim. Júlio chega até o pudim, coberto, protegido, a calda ficou firme demais, dura demais, rachando, Júlio acha graça, Antônio acha graça, tim, tim, tim, colheres na mão, rachando tudo, quebrando tudo, tudo que não quebra; o pai acha graça, a mãe não. As namoradas estão rindo também, o mundo inteiro sente cócegas, a música do pudim de aniversário é joia rara, beleza pura, junho tem uma melodia, mais uma saudade para sempre. Quem diria, o açúcar craquelou. Os quatro tão perto, de uma maneira tão e só deles; quando sair para uma volta, imagina Antônio e não diz nada, vou lembrar com o lado mais calado do coração.
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