Monday, April 30, 2012

Meio sem jeito, Fernanda enxugou um pouco o olho, isso é tão bonito que, não sei, dá vontade de chorar. É que... Tão estranho, imagina, por ser bonito desse jeito, de verdade desse jeito, acho que era para ser feliz. Mas. Mas tem alguma coisa que foge imediatamente quando nos damos conta de que é tão bonito, e vem uma saudade, uma certeza de que está ficando para trás, de que inevitavelmente vai mudar, mais feio, não tão bonito, de novo. Senti isso algumas vezes contadas, foram poucas, muitas, por serem tão bonitas. Estava no carro com minhas irmãs, em Miami, acredita? A gente estava voltando de um restaurante, à noite, tocou no rádio "Girls just wanna have fun" e foi tão enormemente delicado e honesto - as três ficaram com vontade de chorar, e cantamos. Depois, será que você vai lembrar, lá no Ibirapuera, a gente estava sentado num banco de concreto, olhando o lago, você falou de um aniversário que foi piquenique numa noite de 2003, que estava sem dinheiro, sem planos, quando ligaram, estamos passando aí. Você sempre fala desses seus amigos, daqueles seus amigos, com vontade de ver tudo de volta, porque tem pouca ideia do que andam fazendo, do que anda acontecendo com cada um. Seu olho ficou vermelho, fiquei meio quieta, alguns amigos também, mais previsíveis talvez. De repente, o mundo surpreende com coisas parecidas, mas diferentes, que emocionam igual. A gente não sabe prever, mas até sente quando vai ser assim. Corre um ar gelado por dentro, lembro o tanto que sempre me protegi no colchão, quando chegava em casa, quando chegava a noite e eu não sabia muito bem o que aconteceria no dia seguinte. Na maioria das vezes, foi o café da manhã, com cereais e alguma fruta, até eu substituir o leite integral por desnatado. Só que, à noite, era essa brisa que eu sentia, que me encolhia. O mesmo vento frio de quando alguma coisa muito bonita vai acontecer. 

Saturday, April 14, 2012

Cheguei perto da porta, queria dizer tchau de uma maneira diferente. Também queria falar alguma coisa a mais, que a gente só fala no último dia, quando imagina que vai levar tempo para ver de novo - e a gente finge ter esquecido.
Fiquei esperando o começo, que era o mais difícil, porque depois vinham o meio e o fim, tudo exposto sem espaço para voltar. Falei que era bom ir, imaginar o mundo de onde imaginei um mundo; que estava sem entender muita coisa, disposto a correr se ficasse impossível demais. Tinha que ser agora, ou um pouco antes, mal nenhum se fosse um tempo depois. Olhou para mim, o olho já esfumaçado, a dicção atrapalhada, que legal é conhecer gente que tem muito da gente e que vai sempre deixar uma saudade especial. Quando a gente lembrar, quando a gente se perguntar, se. Vai casar, Fê?
A gente se falou que as coisas são assim. Sentamos numa cadeira laranja sem planejar, ganhamos um nome de usuário e uma senha, e inesperadamente nos vemos pensando num jeito de levar isso adiante com a ajuda de quem corre igual quando fica impossível. Vai voltar a estudar, Lu?
Então, falou que daqui a dois ou três meses estaria abraçando uma polaca, vai, tem coisa esperando o dia em que você vai querer correr, inclusive quando fica possível. Abriu um sorriso de leve, quando conheci, alguma coisa acendeu o sinal, esse moleque aí, cabelo desarmado, camiseta rala, esse moleque é para conhecer de perto, vou falar que tomo whiskey e convidar para uma festa, vamos parar num posto de conveniência, não tomo vodka, vou falar de uma amiga que viu nele, vamos arrebentar o sapato, vai beijar uma mulher mais velha, estamos rindo no sofá, o rapaz tocando cítara, uma amiga que viu nele, em você, especial.

Thursday, April 12, 2012

Coloquei o fone no ouvido um pouco antes de dar play. Na hora, não me dei conta de que todo mundo na sala estava ouvindo a mesma música que eu. O fone estava desplugado; não percebi.
Agora, estou ouvindo a mesma coisa que ouviram, sem ouvir, comigo. O ruído debaixo do Minhocão, com chuva, terminava num apito quase igual. Só as camadas de voz, acho, ficaram sem um efeito parecido.
Escuto essa música quando me lembro da Sabrina. Quando me lembro da primeira vez que comi uma jabuticaba direto do galho. Quando penso no cansaço do dia em que cheguei de Roma. Quando me lembro dos intervalos com a Mirela. Do dia em que o Joca e eu achamos que o mundo ia dar certo. Da vontade de ler livros de gente triste. Da vontade de ouvir discos do meu irmão. Do medo de deixar o Ico escapar pela porta. Morreu atropelado. Da expectativa de ouvir um sim quando pedi para ver o fim do Programa do Jô; tem mulher pelada. Da piscina num apartamento na Barra, depois, mais tarde, debaixo da chuva; a Patrícia e eu, uma punheta. Ouço essa música que parece vento quando corro de bicicleta, uma, duas voltas no quarteirão, vou deixar meu irmão ganhar, em 87. Fui ao Morumbi seis ou sete anos depois. Antes, durante e depois do gol, ouvi a mesma brisa, a mesma trilha que tocou no pênalti que o Macedo marcou; a gente aprende a ter vontade de ser campeão. Né?
Escuto essa música quando não tenho muita coisa para fazer. Ou quando tenho uma lista de pendências bobas para garantir o salário do mês que vai garantir o mundo que eu sempre adio e não vem.
Não vem.
Quando presto atenção a um avião, no céu, atravessando um fundo escuro de nuvens carregadas, quase no intervalo iluminado pelo clarão, mais escuro aqui embaixo, são quase seis. Quando arrumo as minhas malas, tão perto e tão longe do dia da chegada, e abraço as pessoas que me fizeram fissurado por saudade. Tchau, Lucía. Me escreve, Penélope. Quando você vem, Vane. Vamos escrever um livro, Cesar. E não vem.
Escutava essa música do berço em que eu via um trem subir para despencar do terraço do prédio onde eu morei. Levantar e cair. Escutava quando latia alto com o Téo, e a Fátima, que arrumava lá em casa, derrubou a dentadura no meu pão com requeijão. Quando minha tia não me olhava mais. No caminho do velório, enrolei a caixinha dos meus óculos na mão; meu irmão dirigindo, ninguém falando nada, só o vento e a música que ouvi antes de ouvir depois.
Ouvi e ainda ouço essa música no banho. Na cama. No chão. Ouço quando tenho motivo, quando tenho um sonho inteiro. Principalmente, quando entendo que demoro muito para me refazer da decepção.
Estou ouvindo agora, tem um monte de cigarra lá fora, primeira vez que estou em Tietê; meus irmãos e eu, de pijama, no quintal, no meio do mato, não vemos nada, mas as cigarras, as cigarras. Agora, muito tempo depois, estou trancado no quarto, roubaram o Téo, meu irmão está ouvindo, abre a janela, de repente, vai que o Téo ficou preso no telhado. Mas não vem.

Não vem. Mas também não sai de mim.

Tuesday, April 10, 2012

Lúcia e Rafael passaram muito tempo tentando descobrir como curar as manchas nas calandívias dos vasos que guardam no quintal. Excesso de umidade; quase um choque.
No jantar de quinta-feira à noite, pouco antes do feriado, quando já pensavam na viagem para São João da Boa Vista, custaram a entender por que Sandro e Eliana preferiram separar a casa, os livros e o telefone. Rafa comentou: "O Sandro adorava ler Drummond; e Eliana, Leminski". Eliana achou engraçado, porque Rafa falou, com familiaridade, de coisas que nunca leu. "Sei lá, os dois adoravam pizza de calabresa, lembra?". Rafa pensou imediatamente numa data, em 2006, quando os quatro pararam para comer numa rua esquisita da cidade, e, sem querer, descobriu o muito que a Lúcia sabia de Astrologia. "A Eli parece a minha mãe em diversas coisas. Diversas, não. Nas principais."
Rafael planejou mudar de carreira; no atual emprego, mesmo de 3 anos, não tinha nenhuma. Planejou e um dia, comendo salada de atum num bowl de cerâmica, comentou com a Lúcia, que mal conseguiu reagir com um "ok". Um sorriso era suficiente, mas não foi.
Ficou nervosa, incomodada, mal humorada; tinha planos para ela que dependiam dos planos que o Rafa tinha para ele.
Naquela noite, lembra bem, ficou sem fome, sem tesão. Mas decidiu comer a Lúcia para ver se terminavam mais leves, em paz. Rafa, pensando agora, reparando na cor amarronzada das folhas grudadas na terra, acha que não funcionou. "Não funcionou", fala baixo, "porque eu queria ficar bem com o que eu queria, e não exatamente com a Lu, que deixou escapar uma resistência enorme com a minha vontade de fazer alguma coisa pensando em mim."
Às vezes, o Rafa parece gente boa demais; usa palavras pouco complicadas demais. Daí, de repente, numa frase reta e imediata, descobre ("un" mais que "dis"cover) a falta de delicadeza de algumas coisas que arrebentam o mundo. Hoje, no ônibus, falou do gorro que comprou para a sobrinha, que vai nascer. Pediu para bordar "revolunciocita". "Si no puedo bailarcito, no es mi revolucioncita."
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